«Se novos conflitos emergirem, o mais certo é assistirmos a novos fluxos de refugiados»
O número dos que fogem a guerras, perseguições e conflitos nunca foi tão elevado. No final de 2018, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) existiam, um pouco por todo o mundo, mais de setenta milhões de refugiados, deslocados e asilados. Para dar resposta ao drama destas populações é necessário, defende Sivanka Dhanapala, colocar um fim aos problemas que estão na origem de fluxos humanos tão consideráveis. O responsável do ACNUR junto do Governo da República Popular da China esteve recentemente em Macau para as celebrações do Dia Mundial dos Migrantes e Refugiados. A’O CLARIM, Dhanapala revelou que o organismo tenciona discutir com o Governo de Macau formas de optimizar os mecanismos de acolhimento a refugiados já existentes no território.
O CLARIM– A problemática dos refugiados é uma das questões mais prementes dos nossos tempos. O mundo olha para o problema pela lente dos países ocidentais, mas o documentário recentemente exibido em Macau – “Kakuma, A Minha Cidade” – oferece-nos uma visão diferente, uma visão de esperança. Mais do que um campo de refugiados, Kakuma é, efectivamente, uma cidade, e uma cidade que funciona. É importante fazer passar este tipo de narrativa? Uma narrativa de vida no lugar de uma prelação de morte?
SIVANKA DHANAPALA– É fundamental. Um dos aspectos que saltam à vista no filme a que se refere é o da quantidade extraordinária de recursos que se consegue encontrar no campo de refugiados. Estas pessoas não devem ser vistas como vítimas, mas como parte da solução. Quando um grupo de refugiados procura outro país, fá-lo porque quer fugir à violência e à perseguição. Não é uma situação que fosse por eles desejada. É uma situação em que foram colocados. O mais das vezes, se lhes for dada oportunidade para tal, conseguem ser produtivos e contribuir, mesmo em termos económicos. Quando lhes é dada a oportunidade de trabalhar, contribuem para a economia de uma forma muito, muito positiva, e este contributo contradiz a percepção de que vivem à custa do sistema, do país de acolhimento, da comunidade de acolhimento. Nos últimos anos foi feita uma série de estudos na Síria e em países de acolhimento como a Jordânia, Líbano, Turquia, ou mais recentemente a Alemanha. Estes estudos mostram, de forma quantitativa e de forma qualitativa, que os refugiados são agentes económicos e dão um contributo importante em termos económicos. Este aspecto positivo não deve ser negligenciado. Falava de esperança; eu acredito que a maior parte dos refugiados desejam regressar a casa. Têm a esperança de voltar à sua terra natal. Por vezes, essa opção não é viável e é necessário oferecer-lhes soluções alternativas pelas quais possam optar. Por vezes tal significa ter de serem alojados noutro país. Noutras circunstâncias há outros tipos de mecanismos legais: a atribuição de bolsas de estudo, de oportunidades de trabalho. Infelizmente, para muitos, significa permanecer em soluções temporárias como as que testemunho em “Kakuma, A Minha Cidade” por um longo período de tempo. Kakuma não é uma solução. É um arranjo temporário que vai permanecer disponível até que as pessoas possam regressar a casa ou possam ser realojadas noutro lado. A triste realidade é que muitas pessoas nasceram num campo como este e vivem a vida inteira num campo como este porque as soluções tardam a aparecer. O apelo que o Alto Comissário [Filippo Grandi] fez aos líderes dos países membros da Organização das Nações Unidas – tal como o antigo Alto Comissário, António Guterres, tinha feito no passado – é que é necessário atacar as raízes do problema e colocar fim aos conflitos. Como é que podemos garantir que uma guerra que por vezes se arrasta por décadas tem um fim? É necessária uma cultura de paz, para que estas pessoas possam regressar a casa e possam ajudar a reconstruir os respectivos países. Este é o tipo de esperança utópica que alimentamos. O nosso desejo é o de que as pessoas regressem a casa um dia.
CL– Não será mesmo uma utopia? A verdade é que vemos conflitos emergir quase todos os dias. Há três anos a Síria era o maior desafio. Hoje é a Venezuela que está a alarmar o mundo e não é de todo inviável que novos focos de instabilidade venham a surgir no futuro. A Venezuela é a maior dor de cabeça com que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados se depara actualmente?
S.D.– Bem, é uma delas. Há uma série de situações alarmantes um pouco por todo o mundo. A razão pela qual me referi à Venezuela é porque no início deste mês foi quebrada a barreira dos quatro milhões de deslocados com origem no País. É um número esmagador para um tão curto período de tempo. É uma situação desesperante. Ainda assim, tem razão: há uma multiplicidade de conflitos um pouco por todo o mundo aos quais temos que estar atentos. Há velhos conflitos que permanecem por sanar e novos conflitos que estão a emergir. Sabe, há uma retórica muito negativa sobre os refugiados e as migrações nos dias de hoje, mesmo entre Governos. Há também muito oportunismo político, da parte de pessoas que estão a tentar semear divisões. O que necessitamos é de muita mais solidariedade entre os Estados e as nações, de forma a resolver os conflitos existentes e a prevenir novos conflitos quando as tensões são elevadas. Tem que existir vontade política entre os Governos de modo a que estes objectivos possam ser alcançados. Temos o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que se pronuncia sobre questões relativas à paz e à segurança. O nosso Alto Comissariado ainda em Abril falou no Conselho de Segurança. Poderíamos pensar: “Mas o que é que os refugiados têm que ver com paz e segurança?”, mas, como pode imaginar, há consequências muito directas. Quando há uma perturbação na paz e na segurança, assistimos a fluxos, a movimentos de populações. O nosso Alto Comissário vai com frequência ao Conselho de Segurança das Nações Unidas com o propósito de informar o organismo sobre a situação dos refugiados por todo o mundo. Em Abril, disse algo do género: «Trabalho com e para os refugiados há mais de treze anos e testemunhei uma solidariedade que é remarcável a todos os níveis. Os Governos e as pessoas estão a mobilizar-se em torno desta questão, mas nunca como agora vi tanta toxicidade no que diz respeito aos refugiados e à situação em que estas pessoas se encontram. Vamos unir-nos e recolher apoios para dar resposta a esta situação».
CL– Muitos dos fluxos de refugiados com que o mundo se depara hoje tiveram origem em conflitos, mas no futuro é muito provável que tenhamos que saber responder a outros desafios decorrentes das alterações climatéricas. Já começamos a testemunhar a fuga de populações que são obrigadas a deixar as suas casas devido a secas intensas ou à subida do nível do mar. É um problema que tem tendência a agravar-se no futuro?
S.D.– Sem dúvida. O Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, esteve recentemente na capa da Time Magazinee a mensagem era essa, sobre o impacto das alterações climáticas. Quando era Alto Comissário para os Refugiados, Guterres chamou por várias vezes a atenção para os fluxos de deslocados causados pelo fenómeno das alterações climáticas. Estas pessoas não correspondem, num sentido estrito do termo, a refugiados. Um refugiado é alguém que foge do seu país por existir um receio bem fundamentado de perseguição, de violência generalizada e de conflito. No entanto, no futuro é possível que possamos vir a assistir a movimentos massivos de populações devido às alterações climáticas ou a desastres naturais. Já estamos a testemunhar uma leve subida do nível das águas do mar em algumas ilhas do Pacífico Sul ou nas Maldivas. Temos de estar preparados para responder a estas questões. Já foi empreendido um diálogo, mas as alterações climáticas não são o único problema. Há medida que recursos importantes se tornam mais raros, podemos vir a testemunhar a um aumento das tensões entre comunidades pela posse desses recursos e estas tensões podem levar a novos conflitos. E se novos conflitos emergirem, o mais certo é que venhamos a assistir a novos fluxos de refugiados. É muito importante estar ciente da ligação entre estes aspectos, para que possam ser resolvidos de uma forma coerente.
CL– Macau foi, em várias ocasiões, um centro de acolhimento de refugiados. Primeiro, na sequência da Guerra do Pacífico e da guerra civil chinesa. Depois, após a Guerra do Vietname. No entanto, esta tradição de acolhimento parece que se perdeu. Macau já legislou o acolhimento de refugiados, mas ainda não ofereceu o estatuto de refugiado a nenhum requerente de asilo. Esta passividade dificulta o trabalho desenvolvido pelo ACNUR?
S.D.– Macau é um dos países signatários da Convenção de 1951, como referia e bem. É um território com uma enorme tradição de acolhimento e que no passado evidenciou uma grande generosidade para com os refugiados. Neste momento o nosso principal parceiro em Macau é a Cáritas, que tem estado muito activa na defesa dos requerentes de asilo. Mantemos um diálogo contínuo com o Governo local. Há alguns mecanismos definidos e vamos continuar a discutir com o Governo uma forma destes mecanismos poderem ser optimizados.
CL– O mesmo tipo de comportamento é partilhado pelas principais potências económicas da actualidade. Os Estados Unidos e a República Popular da China não são dos países mais activos no que toca ao acolhimento de refugiados. Dizia há pouco que a questão dos refugiados devia ser discutida com mais frequência no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Poderia ser uma solução para esta problemática?
S.D.– Como lhe dizia, o Conselho de Segurança tem vindo a olhar para a questão dos refugiados, se mais não for pelo facto de que os movimento das populações é, em grande medida, uma consequência de conflitos, de momentos em que nem há paz, nem há segurança. Os Estados Unidos foram durante muito tempo um dos países que mais apoiou os refugiados. A China também sempre se mostrou muito generosa para com os refugiados, mas aquilo de que necessitámos é de mais acção internacional, de uma maior partilha de responsabilidades. É esse o espírito que norteia o Pacto Global para os Refugiados que foi assinado em Nova Iorque, em Dezembro passado. O Pacto define quatro grandes princípios, com os quais todos concordaram. Por um lado, a percepção de que a comunidade internacional necessita de se unir de forma a aliviar a carga a que estão sujeitos os países que recebem refugiados. Ao contrário do que se possa pensar e do que vemos na Imprensa, entre oitenta a 85 por cento dos refugiados que existem no mundo estão em países em desenvolvimento e não em países desenvolvidos. Estas nações de acolhimento precisam de ajuda para que a pressão a que estão sujeitas, até porque têm de lidar também com os seus próprios problemas. Necessitamos de fazer mais para apoiar os refugiados. Viu este tipo de celebração do espírito humano no filme. Através da educação, do acesso ao emprego, há muito que os refugiados podem fazer. Podemos reduzir a síndrome de dependência a que estão associados e restaurar a dignidade destas pessoas. Precisamos, no entanto, de trabalhar também com os países para que se abram um pouco mais aos refugiados e permitam que se fixem em países terceiros. Ainda assim, compreendemos bem as circunstâncias políticas. Não vamos ver, de um dia para outro, um ou outro país abrir as portas e receber dezenas de milhar de deslocados. O que podemos fazer é procurar alternativas inovadoras que tornem possível ajudar estes refugiados: alternativas legais que possam permitir que as pessoas tenham acesso a bolsas de estudo, a oportunidades de emprego e aí por diante. Por fim, creio que um aspecto muito importante se prende com o que podemos fazer para resolver os conflitos existentes e para prevenir novos conflitos.
CL– Em Janeiro, Bruno Frey e Margit Osterloh defenderam, aqui em Macau, que os requerentes de asilo deviam pagar uma espécie de joia de entrada nos países de destino, até porque uma grande parte dos que tentam chegar à Europa, por exemplo, pagam milhares de dólares a intermediários ou a redes criminosas. Poderá ser uma solução para o drama dos refugiados?
S.D.– Desconheço essa proposta. Aquilo que lhe posso dizer é que estas redes criminosas que exploram as pessoas quando estão mais fragilizadas é, infelizmente, uma praga com a qual temos que lidar. Do meu ponto de vista trata-se de oportunistas, que de forma repugnante tiram proveito de pessoas que se encontram numa situação miserável e vulnerável. Quem está a fugir de um conflito, quem está a tentar salvar-se, não devia ter que colocar as poupanças que fez ao longo da vida nas mãos de alguém que, pura e simplesmente, os vai colocar numa embarcação perigosa que pode afundar a qualquer altura em pleno Mediterrâneo. É uma perspectiva muito infeliz. Espero que as forças da ordem possam fazer frente a estas situações de forma mais eficaz. Quando falava de alternativas legais, falava de dar oportunidades a pessoas excepcionais. Se houver alguém com talento, com potencialidades num campo como Kakuma e se houver forma de os ajudar a encontrar emprego em qualquer lado, é isso que gostávamos de fazer. Viu muita gente jovem neste documentário que tem talento, que tem força de vontade. Porque não oferecer bolsas de estudo a estes jovens? Muitas destas pessoas não querem apenas ir para outro país, trabalhar e lutar pelo seu próprio bem-estar, pela sua própria felicidade pessoal. Querem contribuir para melhorar as condições no seu país de origem. Na minha perspectiva, devemos tentar ajudá-los, facultando-lhes estas e outras oportunidades.
Marco Carvalho