PADRE VICTOR AGUILAR

PADRE VICTOR AGUILAR, MISSIONÁRIO COMBONIANO E HISTORIADOR

«A Igreja tem de permanecer sensível à diversidade de culturas»

Quase um milénio antes dos padres da Companhia de Jesus terem chegado à China, um primeiro grupo de missionários, com origem da Síria, estabeleceu-se na então capital chinesa, Xi’an, onde pregou a Boa Nova da “luminosa religião”. Durante décadas tidos como arautos do Nestorianismo, o legado dos monges que trouxeram até ao Império do Meio os preceitos da “religião da luz” deram o mote para a tese de doutoramento do padre Victor Aguilar. O missionário comboniano, radicado em Macau, venceu o prestigiado Prémio Belarmino, atribuído pela Pontifícia Universidade Gregoriana. O sacerdote costa-riquenho esteve à conversa com O CLARIM.

O CLARIM– Dedicou a sua tese de doutoramento às primeiras comunidades cristãs que se instalaram na China, os Nestorianos. Quem eram os Nestorianos? E por que razão ainda hoje esta designação tem conotações negativas?

PADRE VICTOR AGUILAR– Nos dias de hoje já não falamos de Igreja Nestoriana. Falamos, isso sim, de Igreja do Oriente. É a Igreja que tem as suas raízes na comunidade de Antioquia. Nos primórdios da Igreja, havia diferentes Patriarcados: Alexandria, Antioquia, Constantinopla, Jerusalém e Roma. A certa altura, um deles – Antioquia – optou por se expandir para Leste e fundou alguns lugares muito importantes para a história do Cristianismo, como Edessa e Nissibe. Estas foram as primeiras regiões para onde a Igreja se expandiu. Os cristãos da Igreja do Oriente seguiam a teologia dos três principais mestres da escola de Antioquia: Teodoro de Mopsuestia, Diodoro de Tarso e Nestório. Nestório foi condenado no Concílio de Éfeso, em 431. Depois disso, ficou praticamente isolado do resto da Igreja, tendo-se tornado uma espécie de estigma. Qualquer Igreja cujo fundador tenha sido condenado num concílio ecuménico é alvo, obviamente, de um certo preconceito. E depois a Igreja desenvolveu-se em direcção à Ásia: primeiro para o Império Persa, depois para a Índia e mais tarde para a China, tendo chegado à então capital, Xi’an, em 635.

CL– E quem foram esses primeiros cristãos que chegaram à China? Não existem muitos registos escritos sobre eles. Um dos mais importantes é a famosa estela de Xi’an…

P.V.A.– Na prática eram monges. Deixe-me completar aquilo que lhe dizia há pouco. Alguns dos Patriarcas da Igreja do Oriente reformaram por completo as ideias de Nestório e, praticamente, os documentos de que dispomos, os manuscritos nos quais baseei a minha tese, não apresentam qualquer tipo de conteúdo que possamos ligar ao Nestorianismo. Há, obviamente, a heresia com esse nome, mas o conteúdo destes manuscritos é mais calcedónio. Com isto o que eu quero dizer é que está totalmente de acordo com a fé e com a ortodoxia da Igreja, tal como foi definida nos Concílios Ecuménicos. Os primeiros cristãos que chegaram à China eram monges provenientes da Síria. Chegaram durante o reinado do imperador Tang Taizong, numa altura de grande abertura da China a influências estrangeiras. Nesta altura, era possível encontrar na China comunidades budistas, seguidores do Zoroastrianismo e também os membros desta comunidade “jingjiao”, a comunidade da “religião da luz” ou “da luminosa religião”. Era por estes nomes que estas primeiras comunidades cristãs eram conhecidas na China. Não eram conhecidos como cristãos. Eles professavam “a religião da luz”. O que importa referir sobre eles é que trabalhavam com monges budistas. A mensagem que apresentavam é uma mensagem muito inculturada, no sentido de que recorriam a categorias de natureza budista.

CL– Que tipo de impacto tiveram na altura? Conseguiram evangelizar as comunidades locais?

P.V.A.– Esta primeira comunidade era sobretudo uma comunidade monástica e teve uma presença sobretudo intelectual, direccionada para a corte e para os que a rodeavam. Não vou dizer que a mensagem que transmitiam se destinava à população em geral, até porque o número nunca cresceu e nunca se afirmou verdadeiramente como comunidade no sentido lato do termo. Dois séculos depois, em 845, as autoridades chinesas promulgaram o Decreto de Suspensão e, praticamente, todas as religiões estrangeiras desapareceram da China: os zoroastras e os budistas, mas também os membros da comunidade jingjiao. Depois, de certa forma, tiveram de optar pela clandestinidade e, em alguma lugares, acabaram por desaparecer de todo.

CL– Referia um certo enquadramento budista na forma como os monges da “luminosa religião” transmitiam os seus ensinamentos. Que importância tinha este factor? Prova, de certa forma, que logo desde o início a abordagem pela qual se optou foi a da inculturação…

P.V.A.– Bem, de uma forma muito concreta, o que havia era colaboração. O Budismo já estava presente na China há cerca de duzentos, trezentos anos. Alguns monges budistas sabiam Chinês, outros eram chineses eles próprios. Os missionários sírios não tinham qualquer conhecimento da língua. Os monges budistas ajudaram-nos a traduzir a sua mensagem, adaptando-a às chamadas categorias “yu song”. Estas categorias são budistas por natureza. Por exemplo, nos manuscritos, o nome de Deus é referido como “o bem respeitado”. O Espírito Santo, por exemplo, é identificado como “o Vento fresco” ou “o grande Vento misericordioso”. Este tipo de conceitos têm uma natureza e um enquadramento budista. Mas há muitos mais que eu poderia referir.

CL– Como é que a abordagem desta comunidade, ainda amplamente desconhecida, pode ser comparada com as abordagens posteriores, tanto a que foi feita pelos franciscanos, como a que foi feita pelos jesuítas?

P.V.A.– Este é um aspecto que tem vindo a ser discutido e que foi abordado em Roma, quando defendi a minha tese. Ricci não tinha conhecimento desta comunidade. Nunca ouviu falar dos monges da “luminosa religião”. Se ele tivesse conhecimento teria tido, de certa forma, o tipo de enquadramento histórico que lhe permitiria justificar a sua própria posição, que era fortemente pró-inculturação. Mas Ricci não tem na história um ponto de referência e a sua abordagem foi, em grande medida, desaconselhada devido à “Questão dos Ritos”: não podemos misturar o que é pagão e devemos preservar uma certa integridade do Cristianismo. Se ele tivesse esse tipo de referência, de que os cristãos – ainda que não fossem calcedónios, ainda que não fossem católicos – promoveram uma abordagem que colocava em destaque o aspecto da aculturação, teria uma espécie de fundamentação com que podia sustentar a sua posição. Nem mesmo a Igreja pode negar que houve um esforço de inculturação anterior a Ricci. Mas talvez a mais importante constatação deste processo é que o Cristianismo chegou à China muito cedo. Já estava na China nos anos 600. O documento data de 635. O Cristianismo na China não é algo que chega com os europeus no século XIV ou no século XV. Já havia cristãos na China na Dinastia Tang.

CL– A inculturação ainda é a resposta para a evangelização da China?

P.V.A.– Quando falamos de inculturação temos de ter em conta dois aspectos: um é o da necessidade de preservar a integridade da vontade de Deus. Por outro lado, a Igreja tem de permanecer sensível à diversidade de culturas. Como é que podemos integrar estes dois aspectos? É óbvio que a Igreja não pode aceitar todos os aspectos que dão forma a uma cultura. Por vezes são contracultura. Mas é necessário ter em conta estes dois elementos: a centralidade, a integridade do Evangelho e da mensagem da Igreja, por um lado, e o aspecto da diversidade de culturas que estão presentes no mundo. É um desafio, não só na China, mas no mundo inteiro: em África, na América Latina, em diferentes locais. Estes aspectos têm que ser considerados para que o trabalho da Igreja seja bem sucedido.

Marco Carvalho

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