«Não se pode estudar Jesus, apenas e só, a partir de premissas de tipo espiritual»
Tem por título “O tempo de Jesus – O mundo e as instituições judaicas”, chegou às livrarias portuguesas no final de Outubro e propõe uma abordagem mais abrangente à figura de Jesus Cristo através da análise do tempo histórico em que viveu o filho de Deus feito homem. No seu mais recente livro, o padre João Lourenço argumenta que não é possível compreender a verdadeira mensagem de Jesus Cristo sem entender o tempo em que viveu. A obra, explica o primeiro reitor da Universidade de São José em entrevista a’O CLARIM, é um convite à descoberta da presença histórica de Cristo. O padre João Lourenço em discurso directo.
O CLARIM– “O Tempo de Jesus – O mundo e as instituições judaicas” foi lançado a 22 de Outubro e propõe um conhecimento mais profundo da mensagem de Jesus Cristo através de uma maior compreensão do tempo histórico em que viveu. De que forma é que esta abordagem ajuda a entender melhor o legado espiritual de Jesus?
PADRE JOÃO LOURENÇO– Antes de mais, importa salientar que Jesus é um personagem situado num tempo e num espaço concreto e é em resposta às questões desse espaço – questões de natureza cultural, social e religiosa – que podemos situar a sua presença histórica. Por vezes, existe a tentação de pensar que Jesus é apenas um ser “espiritual”, sem tempo e sem história. Ora, isso é atentar contra um dos fundamentos da nossa fé que afirma a verdade fundamental da “encarnação”. Mas, falar da encarnação não se reduz à encarnação de Cristo; é algo que abarca toda a história da salvação. A Palavra de Deus de que Jesus Cristo é a plenitude – Lógos, como diz São João (1,1) –, encarnou na história dos homens através de um povo, o povo da Aliança. Este encarnar significa que fez a nossa história a sua história, a nossa cultura a sua cultura, a nossa humanidade a sua forma de ser entre nós. Por isso, não é possível compreender a verdadeira mensagem de Jesus de uma forma abstracta, fora da história de um tempo e alheia às questões do seu tempo histórico. Cada página dos escritos do Novo Testamento, designadamente dos Evangelhos, são uma prova clara do envolvimento de Jesus na história do seu povo, não fugindo às questões da sua época, incluindo aquelas que por vezes marcam o destino dos povos, como são as marcas políticas e, ao mesmo tempo, fazendo seus os anseios e as inquietações dos seus contemporâneos. Mas, o tempo de Jesus não é o tempo do presente; nesse tempo se repercutem e estão presentes as grandes encruzilhadas do Judaísmo de então e da relação deste povo com os demais povos e culturas, a começar, como bem sabemos, pela tensão existente com o mundo romano e com a cultura de traços helenistas.
CL– Disse à Agência ECCLESIA que é importante estudar a vida e o legado de Jesus para além de uma perspectiva idealista ou ideológica. Que aspecto deve ser tido em conta quando se aborda Jesus Cristo como figura histórica?
P.J.L.– O que eu pretendo afirmar – e o subtítulo da obra expressa-o de forma bem vincada – é que não se pode estudar Jesus hoje apenas e só a partir de premissas de tipo espiritual ou religioso. A pessoa de Jesus enquadra-se num mundo e num cenário muito mais abrangente, num universo de questões sociais, religiosas e políticas que conferem à sua pessoa e, consequentemente, à sua mensagem uma abrangência que vai muito para além de uma perspectiva meramente teórica ou simplesmente espiritual. Ao abordar a questão “Jesus” é necessário situá-lo num tempo, que é o seu, num ambiente cultural e religioso que é o do Judaísmo pluralista de então, marcado por diferentes grupos religiosos e culturais, com cenários muito diversos que nem sempre são tidos em consideração. A abrangência da sua pessoa e da sua mensagem só ganha pleno sentido neste enquadramento. Estudar a história do tempo de Jesus não é uma tarefa suplementar; pelo contrário, é uma prioridade metodológica e uma necessidade científica para dar clareza e validade a qualquer estudo nesse sentido. Ouso mesmo afirmar que, não havendo essa prioridade, qualquer estudo sobre a pessoa de Jesus não passará de um conjunto de boas intenções, um exercício de espiritualidade, mas pouco terá a ver com a pessoa concreta de Jesus.
CL– De que forma está estruturado o livro? Que panorama procurou traçar do tempo e das circunstâncias em que viveu Jesus Cristo?
P.J.L.– “O Tempo de Jesus” é composto por nove capítulos, precedidos de uma introdução que tem como objectivo contextualizar toda a problemática de que trato ao longo do livro. Estes capítulos abarcam outras tantas áreas ou problemáticas próprias da época, tais como: o mundo político da época, as coordenadas económicas e sociais, as instituições judaicas (designadamente, o templo, o sinédrio, o sacerdócio), a diáspora judaica, os grupos e o movimentos de carácter social e religioso, as teologias do período intertestamentário, o culto e a oração, a sinagoga e a comunidade e, por fim, um pequeno capítulo a que dei o título de “Olhar o mundo judaico a partir do Novo Testamento”. É claro que numa obra deste teor não se consegue abarcar todas as questões da época; fica sempre mais por dizer do que aquilo que se consegue dizer. Muitas das questões aqui tratadas comportam um sem número de problemas. Recorrer às fontes históricas da época, já de si escassas, abre-nos horizontes muito amplos e comporta abordagens que dificilmente se consegue comprimir numa obra com cerca de 320 páginas. O nosso objectivo é proporcionar aos leitores – crentes ou não crentes – uma melhor compreensão da pessoa de Jesus a partir do seu contexto vital, ou seja, como se diz na exegese de tradição alemã: a partir do “Sitz-im-Lebel”, isto é, do seu contexto de vida. Deixamos de parte algumas questões que também são fundamentais, como seja um estudo directo da literatura judaica de então, uma das grandes fontes para o estudo da época. Já o havíamos feito numa obra anterior, entretanto esgotada, que se chama “O mundo judaico em que Jesus viveu”. A centralidade dessa obra estava no “mundo judaico”. Agora, a centralidade está na pessoa de Jesus e nas “ferramentas” para conhecer o seu tempo.
CL– Que outros estudos e trabalhos tem em mãos?
P.J.L.– Uma pergunta oportuna. Tenho como prioridade, aliás já entregue na respectiva Editora para edição próxima, uma obra sobre os “Profetas e Profetismo em Israel”. É um trabalho duma ordem de grandeza mais ou menos idêntica a este sobre “O tempo de Jesus”. Sou o director da Revista Terra Santa, versão portuguesa, de publicação trimestral, que me leva o tempo disponível, além da carga de aulas e de investigação para as mesmas. Posso dizer que trabalho não me falta nem procuro emprego, seja em que for. Gostava também de um dia – não sei quando, nem como – publicar algo de mais profundo e abrangente sobre os “Salmos”. Vamos ver e, sem colocar o “carro à frente dos bois”, tudo isto depende da saúde e também do exercício da minha liberdade de jubilado, pois neste momento a carga de leccionação é tão grande como o era antes.
Marco Carvalho