Clericalismo é a maior doença da Igreja Católica.
O CLARIM aproveitou a recente passagem de Aurelio Porfiri por Macau para abordar os grandes temas da Santa Sé, desde a reforma da Cúria Romana até aos escândalos do Vatileaks e da pedofilia. O clericalismo está a minar todos os quadrantes da Igreja Católica, sustenta o maestro italiano a residir em Roma, para quem será mais fácil o Papa Francisco visitar a Rússia do que a China.
O CLARIM – Está de regresso a Macau para tratar de alguns assuntos pessoais e divulgar o seu novo e-book de poemas…
AURELIO PORFIRI – Na realidade são dois livros. O de poemas, “Dança das Palavras”, é a versão portuguesa do livro publicado em Italiano. A tradução ficou a cargo de uma pessoa de Macau, a Mariana Pereira. O segundo, “Writing on Water” [Escrever na Água], também em e-book, foi lançado a 1 de Junho em Inglês. É uma prelecção aos pais chineses sobre a música e educação; uma espécie de sumário sobre tudo o que aprendi em Macau [nos sete anos de docência], no qual dou a minha opinião sobre o sistema educativo, que não é tão bom como provavelmente poderia ser. Os e-books podem ser adquiridos na Amazon.
CL – A que se dedica em Roma?
A.P. – Cuido do meu negócio editorial. Tenho a Chorabooks, que também publica alguns dos meus livros na versão e-books. E tenho a Choralife, dedicada à publicação de pautas musicais, CD’s e DVD’s.
CL – Em Roma também se relaciona com a Igreja Católica. Que opinião tem do Vaticano nos tempos que correm?
A.P. – Pelo que observo há alguma confusão devido à nova direcção que o Papa Francisco quer dar [à Igreja]. Por isso, também há resistências. Por exemplo, através da minha experiência, especialmente [ao nível da colaboração] para O CLARIM, tento contactar alguns cardeais, mas muitos têm medo de falar por recearem dizer algo que talvez não agrade à alta hierarquia.
CL – Será que a Igreja Católica se opõe à liberdade de expressão?
A.P. – Como disse, há alguma confusão sobre a direcção a tomar. E como há esta confusão as pessoas optam por ser prudentes, em vez de tomarem partidos. Até mesmo quando se vê o Papa em público, ele parece muito acessível, mas quando está no seu próprio gabinete é muito rígido.
CL – Quais são os principais problemas da Igreja Católica?
A.P. – Um deles é o clericalismo. Provavelmente, o clericalismo é a maior doença que a Igreja tem em toda a parte. O problema é também ser uma doença sistemática, tornando-se algo muito difícil de erradicar.
CL – O que entende por clericalismo?
A.P. – Basicamente é quando o clero se aproveita do seu papel.
CL – Não deve o clero estar ao serviço da Igreja e das pessoas?
A.P. – Claro que deve, mas também há clérigos fracos. Por vezes são ávidos de Poder e aproveitam-se dos cargos que desempenham, como se estivessem autorizados a privilégios especiais. Ainda há dois dias [4 de Junho] o Papa lançou o Motu Proprio [intitulado “Como uma Mãe Amorosa”], referindo que qualquer bispo deve ser imediatamente afastado do cargo se proteger comportamentos relacionados com abusos sexuais no seio da Igreja. Penso que o Papa sabe muito bem quais são os problemas, mas é muito difícil mudar determinadas situações que acontecem há muitas décadas, se não há séculos.
CL – Como vê a reforma da Cúria Romana?
A.P. – É parte do problema.
CL – Será o maior desafio e, talvez, o principal trabalho do Papa Francisco?
A.P. – Não poria as coisas nesses termos. Penso que o maior desafio para a Igreja, e não apenas para o Papa Francisco, é como responder às mudanças da sociedade moderna. Antes, quando a Igreja impunha a cultura, era tudo diferente. Agora que a sociedade se tornou de alguma forma independente da vida religiosa, por vezes parece que a Igreja não é capaz de seguir a matriz, nem de saber como reagir. Anteriormente o Papa Bento XVI deu uma espécie de resposta, focando a luta no relativismo e coisas do género. O Papa Francisco tem outras prioridades. Por isso, julgo que a reforma da Cúria Romana é apenas parte desse grande problema.
CL – Que lhe apraz dizer sobre as investigações às finanças do Vaticano?
A.P. – É um problema que está relacionado com o que mencionei anteriormente: o clericalismo. Por vezes a forma como os recursos estão a ser geridos não será a mais indicada. É preciso entender que são homens fracos, pois são como nós e podem cometer erros. Por vezes a situação fica fora de controlo. Este julgamento [do Vatileaks] é como um grande espectáculo. É algo que também me faz rir. O mais perturbante é a publicação de dois livros, um de [Gianluigi] Nuzzi e o outro de [Emilio] Fittipaldi.
CL – São livros baseados em mentiras ou haverá alguma verdade?
A.P. – Claro que há verdade. Pode-se ver que há verdade porque há um julgamento. E só há um julgamento porque as pessoas foram acusadas de passar documentos para a elaboração dos livros. Se foram acusadas é porque os documentos são reais.
CL – Não haverá aqui um contra-senso? Por um lado, dois jornalistas italianos foram acusados de escrever livros baseados em informações que poderão ser verdadeiras. Por outro lado, parece que o Vaticano tenta esconder tudo debaixo do tapete e abafar o escândalo…
A.P. – Põe tudo debaixo do tapete porque está sempre com medo dos escândalos. É algo que sempre fez. Por exemplo, quem viu o filme “Spotlight”, que aborda este escândalo [de pedofilia] em Boston… Foi exactamente o que aconteceu: a Igreja tentou esconder um grande problema. É algo que o Papa Francisco está agora a tentar mudar, embora seja muito difícil, por ser parte de uma mentalidade – diria – quase ancestral. Quanto aos dois livros, penso que nem tudo será verdade. Provavelmente haverá coisas que não são verdadeiras, mas é interessante porque, por vezes, apercebemo-nos que não há coerência entre o que a Igreja ensina e a forma como os homens da Igreja vivem o que ela lhes ensina.
CL – A pedofilia na Igreja Católica é…
A.P. – É algo horrendo! Por isso, o Papa emitiu há dois dias o Motu Proprio, por forma a evitar que qualquer bispo possa lavar as mãos sobre o assunto, se disso tiver conhecimento. Anteriormente, se um padre cometesse pedofilia, o bispo poderia ser transferido e não seria afastado do cargo. Agora não! Se o bispo encobrir o crime – porque se trata de um crime – tem que ser afastado. Há aqui um claro sinal do Papa Francisco em querer uma forte mudança de direcção. A pedofilia na Igreja é um enorme escândalo.
CL – O Papa Bento XVI, seu antecessor, parece não ter tido o mesmo empenho…
A.P. – Não é verdade. Até mesmo o Papa Bento XVI reforçou uma série de leis para prevenir que acontecessem este tipo de crimes. O Papa Francisco diz sempre que está a continuar o trabalho do seu antecessor. É preciso entender que são dois Sumo Pontífices com estilos diferentes. O anterior era mais discreto, embora também fosse sempre muito enérgico contra estes crimes. Chegou mesmo a chorar quando se encontrou com vítimas de pedofilia [na deslocação a Malta, em Abril de 2010].
CL – Apesar de todos estes problemas que a Igreja Católica atravessa, também há excepcional grandeza em inúmeros membros do clero, que muito têm feito pela humanidade.
A.P. – Não há dúvida disso. Não há! Mas voltando ao Papa Bento XVI… Também de certa forma estão a regressar algumas tradições dentro da Igreja, tais como as missas em Latim e os cânticos gregorianos. É algo positivo. Provavelmente não é tão forte em Macau, mas quem for a Roma observa que há muitos jovens nestas cerimónias religiosas. Vão, preocupam-se e seguem. Há este acordar para as tradições.
CL – Há condições para o Papa Francisco visitar a Rússia e a República Popular da China?
A.P. – Tenho a impressão – e pelo que tenho falado com alguns jornalistas em Roma – que há maiores possibilidades de ir à Rússia. Sobre a China, há duas posições muito fortes. Há quem seja favorável ao diálogo, embora sem por vezes conhecer o outro lado muito bem. E há quem defenda que o Vaticano deve ser muito prudente – sou da mesma opinião. O Papa irá encontrar uma forma de visitar a China, mas espero que não faça muitas concessões, caso contrário poderá causar muitos prejuízos aos crentes e à Igreja [na RCP].
PEDRO DANIEL OLIVEIRA
pedrodanielhk@hotmail.com