«Os meus antepassados e a minha comunidade são os guardiões da fé católica na Malásia»
Organizador das duas edições da Conferência das Comunidades Luso-Asiáticas, o malaio Joseph Sta Maria tornou-se, ao longo dos últimos anos, um dos principais rostos da comunidade de luso-descendentes da Malásia. Os “Portugueses de Malaca” falam entre si num Português datado e têm pratos com leves conotações, mas a característica que melhor os define é a religião. Os membros da comunidade mantiveram o Catolicismo vivo durante mais de cinco séculos e Joseph Sta Maria não tem pejo em qualificá-la como a guardiã da fé católica na Malásia. A comunidade mantém vivas tradições religiosas seculares e continua a rezar o Terço todas as noites, assegura o activista cultural em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM– Para a comunidade portuguesa de Malaca a Religião Católica é um dos aspectos que a distinguem do resto da população da Malásia. Trata-se de um importante traço de identidade. Que importância tem o Catolicismo para a comunidade de luso-descendentes de Malaca?
J.S.M.– Quando os portugueses chegaram a Malaca, chegaram com três grandes objectivos em mente: Deus, Ouro e Glória. Por Deus subentende-se a missão de disseminar a religião. Os portugueses não trouxeram qualquer mulher para Malaca. As tripulações dos barcos eram compostas apenas por homens. É verdade que trouxeram com eles gente de Goa, mas foi com mulheres locais que casaram. O Rei de Portugal, D. João III, emitiu um decreto no qual encorajava casamentos mistos e no qual autorizava que os portugueses produzissem novas raças onde quer que fossem. Esta posição era parte importante da política adoptada por Portugal à época. Uma figura que deixou marcas profundas em Malaca foi Afonso de Albuquerque. Depois da conquista da cidade, Albuquerque premiou os seus soldados, ao conceder-lhes autorização para casar com mulheres locais. Foi esta política que permitiu pessoas como eu, de uma comunidade mestiça. No que diz respeito a Malaca, os luso-descendentes consideram-se a si mesmos como membros da comunidade portuguesa de Malaca, mas consegue encontrar outras comunidades de origens portuguesas nos quatro cantos da Ásia: no Sri Lanka, Macau, Goa, Damão, Diu. Até no Vietname as encontra. No caso de Malaca, as festividades da comunidade portuguesa são festividades muito católicas. A maior dela é a “Festa San Pedro”, o santo patrono dos pescadores. Esta celebração tem origens muito humildes, mas agora faz parte das campanhas de promoção turística da Malásia. Consideramo-la uma celebração da nossa comunidade. Depois temos o Natal. A forma como o Natal é celebrado no Bairro Português pugna pela diferença. Não encontra na Malásia outro local com igual vibração, com um ambiente festivo tão significativo.
CL– Referia há pouco a festa de São Pedro e dizia que é uma ocasião especial, tanto para os membros da comunidade portuguesa, mas também para as pessoas de Malaca. Tornou-se uma espécie de atracção turística. E durante o resto do ano? As igrejas ainda enchem em Malaca? As pessoas ainda rezam o Terço em casa?
J.S.M.– Em Malaca as igrejas estão sempre cheias. Mas é mais do que isso. O Bairro Português é praticamente uma única rua. Somos setecentos, os descendentes da comunidade portuguesa, e na prática vivemos todos numa única rua. É claro que há outros membros da comunidade que vivem noutras zonas de Malaca, mas os que estão concentrados no Bairro Português totalizam entre setecentas e oitocentas pessoas. Há a tradição de levar o Rosário de casa em casa a cada três dias. Isto não é algo novo. Acontece há décadas. A Virgem Maria vai de casa em casa e ao fim de três dias em cada casa a família prepara umas iguarias para que os convidados possam comer. Aos Domingos, a igreja está sempre cheia e o mesmo acontece na igreja da Imaculada Conceição. E os padres não chegam. Não há padres suficientes. A fé católica, tal como é vivida pelos católicos em Malaca, é muito forte. É claro que não estamos em maioria nem na Malásia, nem no Estado de Malaca. Somos uma pequena minoria, mas ainda assim somos uma minoria muito visível: as igrejas estão cheias, a devoção é muito forte; o Catolicismo ainda se vive de forma muito rigorosa, ao contrário do que acontece na Europa, onde grande parte das igrejas estão vazias.
CL– Não teme, então, pelo futuro da fé católica em Malaca?
J.M.S.– Há algo, no entanto, que nos causa alguma apreensão. Estamos muito preocupados com a erosão dos rituais e das celebrações tradicionais da comunidade portuguesa. Temos os nossos próprios problemas no seio da Igreja Católica: os sacerdotes jovens, que não são descendentes dos portugueses, têm de compreender a dimensão histórica da comunidade e as ligações que mantém com a cultura portuguesa. Por vezes, há pessoas que se convertem à fé católica e estes sacerdotes não compreendem o peso das tradições católicas da comunidade portuguesa. Isto esteve na origem de alguns mal-entendidos.
CL– Dizia, à margem desta conversa, que os membros da comunidade portuguesa vêm-se a eles próprios como os guardiões do Catolicismo na Malásia…
J.S.M.– Sim, sim. Eu disse isso porque foram os nossos antepassados que preservaram a Religião Católica na Malásia, não obstante a perseguição a que foram votados pelos holandeses. Quando os holandeses conquistaram Malaca, em 1641, ao fim de 130 anos de domínio português, praticamente já não viviam portugueses oriundos de Portugal. Havia, sim, portugueses locais de segunda ou de terceira geração. Nessa altura, a comunidade portuguesa já tinha evoluído. Foram os “Irmãos da Igreja” – a irmandade de Malaca – e os restantes membros da comunidade que preservaram a Religião Católica até ao fim da Guerra da Secessão em que estava mergulhada a Europa. Eles refugiaram-se nas suas próprias casas e conduziam serviços religiosos em segredo, mantendo as práticas católicas vivas. Quando a guerra terminou, os holandeses permitiram que o Catolicismo fosse praticado, mas tal só aconteceu ao fim de cinquenta anos. Só então a comunidade teve a oportunidade de praticar abertamente a sua fé. Este período foi muito difícil: o Catolicismo foi proibido e os católicos foram perseguidos porque os holandeses eram protestantes. Os descendentes dos portugueses que conquistaram Malaca foi quem manteve a Religião Católica viva. Ainda hoje são eles que mantêm a fé católica viva. Sem eles, não seríamos uma comunidade forte e orgulhosa na Malásia. A Igreja Católica talvez não nos veja como os guardiões da Religião Católica na Malásia, mas a meu ver os meus antepassados e a comunidade à qual eu pertenço foram e ainda são os guardiões da fé católica na Malásia. A Igreja Católica tem de perceber esta dimensão.
Marco Carvalho