História asiática relativiza presença estrangeira.
Mal compreendida, a presença dos portugueses na Ásia, o professor e investigador Jorge dos Santos Alves atribui a Macau um papel absolutamente central na interacção com os povos asiáticos, porque a imagem que muitas vezes ficou não era a de Portugal, nem dos portugueses, mas sim de Macau e dos macaenses. A’O CLARIM, o coordenador de Estudos Asiáticos da Universidade Católica Portuguesa sustenta que o Ocidente deve dar grande importância às relações bilaterais com a Indonésia, Malásia e Maldivas, três Estados islâmicos fundamentais para a estabilidade na Ásia Oriental. Quanto à Turquia, adverte que a União Europeia e os Estados Unidos não devem menosprezar quem já foi um império mundial.
O CLARIM – Encontra-se esta semana em Macau para ministrar o curso de formação avançada “Os Olhos da Ásia: História da Memória dos Portugueses”. Que papel desempenha o território neste processo histórico?
JORGE DOS SANTOS ALVES – Macau representa um papel central na presença portuguesa na Ásia desde o século XVI até aos dias de hoje. Todavia, algo interessante, também por mim abordado neste curso, é precisamente compreender como é que Macau não só representa esse papel, como mantém ao longo do tempo um papel absolutamente central, que muitas vezes não se compreende na plenitude quando se descreve em termos da História oficial a presença portuguesa na Ásia.
CL – A que se refere concretamente?
J.S.A. – À importância e ao peso que Macau tem no panorama asiático, nas várias dimensões da presença portuguesa em termos económicos, sociais, políticos, culturais, diplomáticos, etc. E mais: como parte da imagem que uma parte da Ásia guarda hoje de Portugal e dos portugueses. Na verdade não é de Portugal, nem dos portugueses. É de Macau e dos macaenses, que são um Portugal “asiático”, o que é muito interessante.
CL – Os portugueses ajudaram a moldar muitos Estados asiáticos, mas à excepção de Macau, Goa, Malaca e pouco mais são agora comummente esquecidos. Há alguma razão em especial?
J.S.A. – Através da história ou da memória colectiva em Portugal tenho sempre um pouco a impressão que as pessoas quando construíram a imagem e a representação do que foi a presença portuguesa na Ásia tiveram sempre um pouco a tendência, por um lado, para distorcer e, por outro lado, para sobrevalorizar a presença dos portugueses na Ásia. E sem perceberem que os portugueses, na verdade, eram apenas mais um parceiro novo que chegou ao mundo asiático, onde manteve relações políticas, culturais, religiosas, diplomáticas, económicas, etc. Aos olhos dos asiáticos os portugueses inicialmente não eram europeus, porque de certa maneira também eram asiáticos. É um pouco surpreendente, mas é uma realidade. Depois, verifica-se que os textos históricos, digamos assim, asiáticos, muitas vezes não mencionam tanto a presença portuguesa quanto nós gostaríamos ou pensaríamos que acontecesse. Não é por má vontade, nem por xenofobia. É porque a maior parte da memória histórica desses Estados asiáticos pura e simplesmente ignora a presença de estrangeiros. Logo também dos portugueses.
CL – São povos que desvalorizam a nossa presença?
J.S.A. – Bem pelo contrário! Na verdade, significa que perdurou em muitos pontos da Ásia na memória colectiva e nas histórias locais, porque é precisamente difusa. Não só é difusa, como é sobretudo luso-asiática (luso-chineses, luso-malaios, luso-indianos, luso-japoneses, luso-javaneses, etc.) E o que parece uma fraqueza, afinal de contas é a força da presença portuguesa na Ásia e a garantia da sua sobrevivência até aos dias de hoje.
CL – É especialista nas relações históricas entre Portugal e a Indonésia, com reconhecida investigação e vários trabalhos publicados sobre a temática. O que mais lhe atrai nestas relações bilaterais, nem sempre pacíficas?
J.S.A. – O facto de estarmos a falar do lado português, de uma presença religiosa em termos culturais, predominantemente católica – cristã, se quisermos – enquanto do lado indonésio a presença é esmagadoramente islâmica. Embora falemos de algumas regiões [na Indonésia] com as quais os portugueses contactaram nos séculos XVI, XVII e XVIII, até mesmo nos dias de hoje há um Islão muito diferente, muito tolerante, profundamente místico e marcado sobretudo por uma nota diferente. Ou seja, por uma presença muito forte pré-islâmica, como por exemplo na língua, na cultura e até mesmo na tradição jurídica local.
CL – É também marcado por um conservadorismo, por vezes extremo…
J.S.A. – É mais aparente do que real. No caso de Aceh, única província indonésia onde a lei islâmica está hoje implantada, quando andamos por lá percebemos que a “sharia” está instalada e não se deve beber álcool, entre outras limitações para quem é e não é muçulmano. Todavia, sente-se no dia-a-dia das pessoas uma abertura e uma tolerância absolutamente notáveis para quem não é muçulmano.
CL – Tem desenvolvido investigação sobre as redes islâmicas no Oceano Índico até ao século XVII. Frei Pantaleão de Aveiro, no seu “Itinerário da Terra Santa”, descreveu com muita precisão as relações, embora tensas, de certa forma tolerantes entre muçulmanos e os católicos em peregrinação a Jerusalém. Para quem desconhece este “mundo” da segunda metade do século XVI pode até ficar surpreendido…
J.S.A. – Pois! Também digo com franqueza que durante muito tempo se disse que havia uma espécie de “meridiano” religioso a dividir a Ásia quando chegaram os portugueses e depois os holandeses, os ingleses, os franceses, etc. – embora depois houvesse ali do lado cristão a separação entre protestantes e católicos. Ou seja, tudo quanto envolvia potentados, Estados e comunidades islâmicas, as relações eram forçosamente más. No entanto, quando falamos de Estados, reinos e comunidades budistas ou hindus as relações com os europeus, e com os portugueses em particular, eram necessariamente boas. Não é verdade, porque muitas vezes os portugueses fizeram alianças estratégicas, políticas e até diplomáticas com Estados islâmicos, contra reinos budistas e hindus. E vice-versa! Dependia muito da chamada “realpolitik”, algo que agora é absolutamente normal, mas que no século XVI vigorava exactamente da mesma maneira. Sobretudo no mundo dos negócios a barreira religiosa simplesmente não existia.
CL – Frei Pantaleão de Aveiro apontou também no seu “Itinerário” vários santos cristãos e muitos locais bíblicos comuns ao culto religioso dos muçulmanos. Esta prática ainda existe?
J.S.A. – Uma das diferenças do Islão desta parte do mundo, ao que hoje chamamos Malásia e Indonésia, é que associada ao Islão mais místico está o culto dos santos islâmicos. Embora não seja muito bem visto no mundo sunita, ortodoxo, é uma prática que continua e sobrevive de forma extraordinária.
CL – Existe actualmente uma grande divisão não só entre o Cristianismo e o Islamismo, como também dentro do próprio Islão. Há alguma forma para se chegar ao entendimento ecuménico?
J.S.A. – A minha experiência e o meu domínio é histórico. Portanto, olho para o passado e tento perceber como funciona o presente. Há alguns pontos de contacto que se repetem hoje, mas outros são completamente novos. Olhando assim à distância é preciso que os poderes dos Estados “ocidentais”, mais dos europeus, dos Estados Unidos, do Canadá e da Austrália, envidem esforços de aproximação, a nível diplomático, cultural e económico – ficando-me só pela Ásia Oriental – com a Malásia, Indonésia e Maldivas. Há pouco investimento da União Europeia e dos grandes Estados ocidentais numa maior aproximação e cooperação a todos os níveis, até mesmo militar e diplomático, porque são [três] Estados que se não forem apoiados, nem ajudados, se debatem eles próprios com problemas internos, com movimentos extremistas, tornando-se num grande problema dentro de portas também para os Estados que estão à volta e consequentemente para a Europa e para os Estados Unidos. No entanto, o Ocidente tem “aquele” problema: classifica, põe chancelas, põe selos e depois é o diabo para os tirar.
CL – A Turquia seria um bom parceiro caso aderisse à União Europeia?
J.S.A. – Pelo que conheço da História do Império Otomano, a Europa por vezes esquece-se disso pela maneira como trata a Turquia, que até foi um grande império mundial. Nunca devemos desconsiderar, nem subestimar quem foi uma potência imperial. Estou a lembrar-me por exemplo da Rússia… Mas voltando ao assunto, não devemos desconsiderar porque na cabeça das elites turcas otomanas a Turquia continua a ser uma potência imperial. Julgo que, verdadeiramente, o Ocidente deveria ter outras pontes e outras ligações com o mundo turco. O Ocidente poderia aprender muito com o exemplo chinês, que está a investir fortemente nas relações bilaterais político-diplomáticas e económicas com a Turquia, por via da última fase do comboio de alta velocidade que vai ligar o centro e o sul da China com a Europa.
PEDRO DANIEL OLIVEIRA