«Macau é uma terra em que toda a gente do mundo cabe»
Criou um grupo coral, compôs músicas tendo como ponto de partida as Sagradas Escrituras, dinamizou a Catequese na paróquia de Nossa Senhora do Carmo e foi uma das principais responsáveis pelo reavivar da comunidade católica de língua portuguesa na ilha da Taipa. Nove anos depois de ter chegado a Macau, a Irmã Maria Lúcia Fonseca regressa amanhã, 9 de Julho, em definitivo a Portugal por questões de saúde. Na hora do adeus ao território, O CLARIM falou com a Franciscana Missionária de Nossa Senhora sobre os desígnios da fé e os desafios que encontrou em Macau.
O CLARIM– O desígnio da missio ad gentestrouxe-a para Macau há quase uma década. Agora que regressa definitivamente a Portugal, considera que a Igreja Católica tem margem para crescer no território?
Irmã Maria Lúcia Fonseca – Muito grande. Apercebi-me que, de facto – e, hoje, mais do que nunca – há muita margem de crescimento. Sinto que comecei a construir esta vontade de servir cada vez mais e tenho pena de não ter vindo para aqui mais nova. Se tivesse vindo para cá mais nova, se calhar tinha feito mais, mas Deus destinou-me Macau a esta idade e eu servi até quando Ele me pediu. O que noto em relação a Macau é que é uma terra em que toda a gente do mundo cabe. Há um respeito muito grande entre as religiões, entre as culturas. As pessoas respeitam-se muito. Há liberdade total, em termos religiosos. É uma graça de Deus, nós podermos andar na nossa própria pele e atravessarmos a rua de hábito. Isto é algo que dá um sinal da presença de Deus no meio das pessoas. Acho que Macau é um lugar privilegiado onde Deus pode exercer, pode transmitir a sua mensagem através dos seus missionários, das suas missionárias, com entusiasmo, com empenho, com fé. Só tenho pena de não haver aqui actualmente vocações.
CL – Em termos pessoais, que balanço é que traça destes nove anos? Foram também nove anos que lhe permitiram um crescimento em termos de fé?
I.M.L.F. – Digo-lhe uma coisa: aprendi muito com os meus irmãos, mesmo aqueles que não vinham à Missa todos os Domingos. Aprendi com a parte humana, com a parte da atenção social. Aprendi muito e, através das pessoas, aprendi a descobrir que Deus trabalha em cada um, de uma forma que eu, se calhar, ainda não compreendo totalmente, e isso é para mim uma razão de maior admiração. Portanto, não perdi a minha fé. Aumentei-a!
CL – Dizia, à margem desta entrevista, que chorou quando lhe foi comunicado o desafio de vir para Macau. Leva gratidão na bagagem no regresso a Portugal?
I.M.L.F. – Chorei porque nunca imaginei que Macau ficasse tão longe. Nunca tinha pensado vir para a China na minha vida. Sinceramente, se me pergunta se o balanço é positivo ou se foi sempre bom? Não, atravessei momentos muito duros. Por exemplo, o caminhar a pé. Tenho alguns problemas nos pés, para não dizer bastantes. Caminhar a pé no meio daquelas pedras, a subir e a descer a rampa para a Sé é muito penoso para mim. Se tivesse vindo mais nova, as coisas teriam sido diferentes, mas tudo isto serviu para eu me santificar. Tudo isto serviu para me aproximar mais de Deus. Houve momentos duros, mas através da dureza veio a beleza. E essa beleza é uma certa recompensa por aquilo que Deus nos deixa fazer com as pessoas. É formidável. Cheguei a fazer canções sobre a Sagrada Escritura para ensinar às crianças da Catequese. Não segui os catecismos. Baseava-me sempre na Sagrada Escritura e nos tempos litúrgicos: no Advento, no Natal, na Quaresma, na Páscoa. Cheguei a fazer canções e coloquei as crianças a cantar essas canções e a representá-las.
CL – Essa abordagem mais proactiva é fundamental, numa altura em que a Igreja se debate com problemas sérios a nível de vocações e muitas pessoas lhe viram as costas?
I.M.L.F. – Olhe, volto a dizer que, de facto, o envolvimento da pessoa humana é muito importante. Cada pessoa tem uma riqueza muito própria e os missionários, as missionárias devem estar muito atentos à riqueza que cada um tem. Muitas vezes, através de um simples cumprimento, de uma simples saudação, Deus faz-nos sentir que o outro precisa de algo ou que há algo que ele gostaria de saber. Não devemos desperdiçar esses momentos. Tenho na minha vida um lema que aprendi há muitos anos e nunca me dei mal com ele: “Todos os acontecimentos da nossa vida, por mais pequeninos que sejam, são cartas que eu recebo de Deus”. Para as interpretar, saber ler e interpretá-las, é preciso ter fé.
CL – O que se segue para a presença das Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora cá em Macau, agora que regressa definitivamente a Portugal?
I.M.L.F. – Estamos à espera de Irmãs. A nossa Madre geral fez saber que tinha muito empenho em que viessem Irmãs, mas agora, por causa da pandemia, o plano está suspenso, de maneira que nos temos que deixar a casa vazia. Se ficar fechada, sem ninguém cá dentro, as coisas podem ganham bolor e estragar-se. Deixamos as coisas dentro de caixas e quando elas vierem – se vierem – pelo menos têm os primeiros recursos, não é? Se por acaso não vierem, até é mais fácil mover as coisas. A Diocese foi extraordinária e o que nos disse foi que, se não vierem mais missionárias, também não será difícil proceder ao envio deste material. Se vierem, com certeza que as acolhe com muito empenho. Quanto à minha missão em Portugal, acho que, na medida do possível, ainda vou poder fazer bastante junto dos jovens e junto das famílias. O meu campo foi sempre a Educação. Sempre. Ajudei a formar milhares e milhares e milhares de pessoas.
CL – Regressa por motivos de saúde, é óbvio que os próximos tempos serão mais voltados para si própria…
I.M.L.F. – E para Deus. É tempo para me preparar, se Ele me der tempo, para me preparar ainda mais profundamente para me encontrar com Ele. Penso muitas vezes na morte. Não sei se tenho medo da morte. Tenho, isso sim, medo de morrer em pecado mortal. Não queria morrer em pecado mortal, mas digo muitas vezes: “Virgem Santíssima, não permitais que eu viva, nem morra em pecado mortal. Em pecado mortal não hei de morrer, que a Virgem Santíssima me há de valer”. E a Santa Maria, se reparar, “rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte”. É impossível que Nossa Senhora não vele por nós na hora da morte. É impossível. Quem diz a Avé Maria, com este amor que Nossa Senhora merece, ela não nos vai deixar sozinhas. E a oração de Jesus também. Eu acredito. E nós temos também uma bênção que São Francisco deu ao Frei Leão: “Que o Senhor te Abençoe e te Guarde, te mostre a tua face e tenha piedade de ti, que volte o seu rosto para ti e te de dê paz, que o Senhor te abençoe”. Eu digo esta oração muitas vezes, mas para mim mesma. Que o Senhor me abençoe e me guarde. Cada um tem a sua forma de contactar com Deus, não é? E eu sinto-me bem.
Marco Carvalho