Uma Igreja missionária, militante e martirial está apontando para um longo caminho
N.d.R.: No âmbito das últimas manifestações contra o Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, O CLARIMpublica uma entrevista a Paulo Suess, doutor em Teologia Fundamental; fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo; assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi; e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. A razão principal da conversa mantida com RICARDO MACHADO, jornalista do “site online” do Instituto Humanitas Unisinos (IHU On-Line), teve a ver com a Amazónia, um dos principais temas abordados pelos manifestantes no passado fim-de-semana. Paulo Suess foi também um dos peritos que participou do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia, convocado pelo Papa Francisco em 2019. O texto que se segue está redigido em Português do Brasil.
IHU ON-LINE– Qual é sua avaliação geral do documento?
PAULO SUESS –A Exortação Apostólica “Querida Amazónia”, do Papa Francisco, inscreve-se no género literário de uma Carta de Amor dirigida à Amazónia. Nas quatro partes de sua carta, o Papa fala com a sua amada Amazónia de quatro sonhos, sonhos que procuram antecipar novas realidades e horizontes concretos no campo social (n. 8-27), cultural (n. 28-40), ecológico (n. 41-60) e eclesial (n. 61-110). Nas três primeiras partes do documento, portanto no seu sonho social, cultural e ecológico, que se dirigem a “todas as pessoas” e ao “mundo inteiro” (n. 4 e 5), o Papa se inspira com criatividade no Documento final do Sínodo, na sua Carta Encíclica Laudato sie nas consultas prévias feitas ao povo de Deus. Nessas consultas foram ouvidas e sintetizadas as vozes de mais de 86 mil pessoas. Nas três primeiras partes Francisco fala com sua amada Amazónia mais ou menos assim: “Nós, a Igreja, te amamos apaixonadamente (n. 3), nós aprendemos muito de você (n. 26 e 55) e nós te defendemos (n. 63), tua vida, teus direitos, tuas culturas e terras. Podes contar connosco no que der e vier”. O Papa fala com a sua amada Amazónia de quatro sonhos, sonhos que procuram antecipar novas realidades e horizontes. Na quarta parte, que se dirige aos “pastores e fiéis católicos” (n. 60), muda o tom da carta como se o amante tivesse esquecido algo. O sonhador parece “cair na real” e a amada, a “Querida Amazónia”, recebe uma lição-lembrete que, na “cultura do encontro” (n. 61), o passado, que deixou condicionantes contraditórias e heranças históricas, não pode ser esquecido. Existe, por exemplo, a condicionante da evangelização explícita que pressupõe um direito dos habitantes da Amazónia “ao anúncio do Evangelho” (n. 64). Esse direito está vinculado a um dever dos missionários visitantes de anunciá-lo, independente de uma solicitação dos visitados. Por outro lado, a condicionante da celebração eucarística (Presbyterorum ordinis, 6), necessária para a edificação de uma comunidade cristã, e que recebeu uma atenção especial no Documento final do Sínodo (DF 111), não encontrou o encaminhamento esperado. Resumindo: A Exortação “Querida Amazónia”, em seus três primeiros capítulos, mostra uma contextualização importante da EncíclicaLaudato sina Amazónia, mas decisões internas da Igreja Católica que poderiam, na quarta parte do texto, fortalecer essa contextualização e sua bandeira ecológica e sócio cultural através de uma presença ministerial plena, aguardam ainda luz verde.
IHU– Quais são as principais chaves de leitura do documento?
P.S. –Depois da leitura da “Querida Amazónia”, também eu tive um sonho. Me encontrei com o Papa Francisco, agradeci a sua carta pós-sinodal, mencionei algumas pérolas do texto e apontei com aquela “audácia missionária” (n. 95), que ele pediu na sua Exortação e em visitas anteriores para algumas esperanças, aparentemente, frustradas. Pacientemente, o Papa escutou as minhas perplexidades. “Em várias ocasiões, o Senhor nos pediu propostas corajosas e agora nem menciona o pedido dos padres sinodais ‘para ordenar sacerdotes a homens idóneos e reconhecidos pela comunidade (…) para o presbiterado, podendo ter uma família legitimamente constituída e estável para sustentar a vida da comunidade cristã mediante a pregação da Palavra e a celebração dos Sacramentos nas áreas mais remotas da região amazónica’ (DF 111). Diante desse seu silêncio, o que significa, que ‘é necessário aceitar corajosamente a novidade do Espírito’ (n. 69)? O Senhor nos convidou para edificar uma ‘Igreja de rostos amazónicos’ (n. 94) e agora pede ‘ser mais generosos’ (n. 90) no envio de missionários de outras culturas e países que levarão muitos anos para viver e exercer seu ministério segundo o jeito amazónico. Aliás, sempre promovemos ‘a oração pelas vocações sacerdotais’ (n. 90), mas talvez o Espírito bata na porta da Igreja ‘exigindo uma resposta específica e corajosa’ (n. 85) para os dias de hoje”. O Papa interveio suavemente em meu sonho. “Sim, meu caro missionário, eu sei que ‘a pastoral da Igreja tem uma presença precária na Amazónia, devido em parte à imensa extensão territorial, com muitos lugares de difícil acesso, grande diversidade cultural, graves problemas sociais’ (n. 85) e pastorais. A minha resposta, disse o Papa, está no item 86 da ‘Querida Amazónia’: ‘É necessário conseguir que o ministério se configure de tal maneira que esteja ao serviço de uma maior frequência da celebração da Eucaristia, mesmo nas comunidades mais remotas e escondidas’. Em Aparecida, convidou-se a ouvir o lamento de tantas comunidades na Amazónia, ‘privadas da Eucaristia dominical por longos períodos de tempo’. Mas, ao mesmo tempo, há necessidade de ‘ministros que possam compreender a partir de dentro a sensibilidade e as culturas amazónicas’ (n. 86). É a minha resposta para a questão dos ‘viri probati’, que se tornou uma expressão emotiva. Eu não tive a pretensão de repetir nem de substituir os pontos marcantes do Documento conclusivo do Sínodo (cf. n. 2). A fase importante do Sínodo é o tempo pós-sinodal. É o tempo da inculturação das propostas sinodais acolhidas na Exortação ‘Querida Amazónia’. O Papa, disse Francisco, falando de si na terceira pessoa, tem o ministério de zelar pela unidade. Peço compreensão das mulheres, dos leigos e dos agentes de pastoral. Para decisões mais apressadas nos falta o consenso no interior da Igreja. Não posso deixar ninguém fora da canoa eclesial. Sempre tem mais um lugar para um náufrago. Tenho uma afinidade e paciência particular com eles. A minha primeira viagem, se lembram, fiz para Lampedusa. ‘Não se perturbe o vosso coração! (…) Na casa de meu Pai há multas moradas’ (Jo., 14,1-2)”. Falou e acordei.
IHU– Quais são os limites do documento?
P.S. –Os limites da “Querida Amazónia” são os limites da sinodalidade. Quando não se resolvem as questões com autoritarismo ou nos moldes de um sistema democrático, mesmo funcionando bem, as decisões levam mais tempo. Podemos aprender isso com os povos indígenas que discutem noite adentro para conseguir um consenso em determinadas questões. E nas discussões da Igreja, depois de ter discutido noite adentro, ainda não podemos ver a estrela da manhã e da unidade que anunciaria o consenso. Na caminhada precisamos aprender a misericórdia de uns com os outros, a paciência e, sobretudo, compreender a solidariedade como coração da sinodalidade para com aqueles aos quais queremos servir e cuja vida está ameaçada. Na sinodalidade precisamos ter foco nas questões essenciais da humanidade e clareza sobre as prioridades eclesiais, também para não confundir as discussões sobre o celibato com as questões da vida ameaçada na Amazónia. Quando não se resolvem as questões com autoritarismo ou nos moldes de um sistema democrático, mesmo funcionando bem, as decisões levam mais tempo.
IHU– Qual é o impacto que se pode prever?
P.S. –A Exortação Apostólica “Querida Amazónia” não fecha nenhuma questão discutida durante o Sínodo, mas tampouco acelera a sua realização. Ela devolve essas questões às regiões como está previsto na Constituição Apostólica Episco palis Communio(2018), que regulamenta o estatuto canónico dos sínodos: “As Conferências Epis copais coordenam a actuação das referidas conclusões em seus territórios” (EC Art. 19,2), porque “as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (…) se quiser ser observado e aplicado, precisa ser inculturado. Desse modo, observa-se que o processo sinodal não apenas tem seu ponto de par tida, mas também o seu ponto de chegada no Povo de Deus” (EC7). O “impacto”, ou melhor, o resultado, vai aparecer lentamente, segundo o andar do próprio rio Amazonas e as distâncias geográficas que se impregnaram na cultura amazónica. O desenvolvimento acelerado que, em função de lucros dos quais a “Querida Amazónia” não participa, exige também acelerar a implementação de decisões pastorais que visam ao protagonismo dos actores sociais e pastorais a partir da sua própria cultura (cf. n. 40). Seguramente, a bandeira de uma Igreja pós-colonial, inculturada em todas as dimensões sociais, culturais e pastorais, com rosto amazónico, defensora de todos os habitantes da região, uma Igreja missionária, militante e martirial está apontando para um longo caminho, para uma via-sacra com esperança pascal. Precisamos comparar as discussões pós-conciliares com as discussões pós-sinodais para não parar no meio do caminho.
IHU– Deseja acrescentar algo?
P.S.– Os participantes do Sínodo para a Amazónia, que o Papa Francisco convocou com o tema: “Amazónia – Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, reclamaram, às vezes, o suposto sensacionalismo da Imprensa, que se debruçou mais sobre o tema do celibato e da possibilidade de que homens casados possam celebrar a Eucaristia, do que sobre as questões de uma “ecologia integral”. Sem entrar nas razões desse destaque jornalístico, quero apontar para três elementos com certa relevância pastoral para essa discussão. 1– A ausência ordinária da celebração eucarística e de outras celebrações sacramentais, em muitas comunidades, contribuiu para uma mutilação da identidade católica que se baseia na Palavra de Deus e no Sacramento. Essa mutilação sacramental, que é consequência da fragilidade ministerial, é indirectamente responsável pela proliferação do neopentecostalismo na Amazónia que se instalou em muitas comunidades, originalmente, católicas. Não temos o direito de privar os povos, em nome de uma lei humana, da celebração dessa esperança decisiva ou reduzi-la a uma mera doutrina catequética. 2– A Amazónia é uma terra disputada não somente por grupos económicos multinacionais, mas também por grupos neopentecostais que propagam uma teologia da prosperidade com base em leituras fundamentalistas da Bíblia. O neopentecostalismo, em geral, consegue contextualizar e indigenizar seus ministérios. A sua teologia desarticula a luta pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos. O seu fundamentalismo teológico contribui para a destruição da herança cultural de muitos povos indígenas e assim os enfraquece na defesa dos seus direitos políticos. 3– O Documento final do Sínodo e a Exortação Apostólica “Querida Amazónia” enfatizam a importância da presença eucarística para as comunidades cristãs. A Eucaristia, que é a memória de morte e ressurreição de Jesus Cristo, é a garantia de uma justiça definitiva, de um Juízo final, portanto, de uma esperança além da morte e além da vitória dos assassinos. “No fim, no banquete eterno, não se sentarão à mesa indistintamente os malvados junto com as vítimas, como se nada tivesse acontecido” (Spe salvi, 44). Na Eucaristia celebramos “a revogação do sofrimento passado, a reparação que restabelece o direito” (ibid.). Não temos o direito de privar os povos, em nome de uma lei humana, da celebração dessa esperança decisiva ou reduzi-la para uma mera doutrina catequética.
RICARDO MACHADO, IHU ON-LINE
In Boa Nova – atualidade missionária