«Há uma grande falta de atenção relativa às questões sociais e ambientais».
Incisivo e frontal, Sérgio de Almeida Correia revela preocupação pela forma como o Governo olha para as questões sociais e ambientais, não poupando o secretário Alexis Tam pela solução encontrada para o aumento das tarifas dos partos para as não-residentes. A’O CLARIM, afirma categoricamente que Fernando Chui Sai On está cada vez mais afastado da cena política, razão pela qual dá a impressão de existir um Governo de junta. Deixa também fortes reparos às declarações de Kevin Ho sobre o imobiliário e a lei sindical, e critica o modo de actuar da Assembleia Legislativa.
O CLARIM – É tido como uma das vozes mais frontais no que respeita à actividade do Governo. Como analisa a evolução social de Macau desde a transferência de poderes?
SÉRGIO DE ALMEIDA CORREIA – O que tem acontecido desde 1999 é uma grande degradação das condições sociais de Macau, o que acaba por estar em contradição com o desenvolvimento económico e a riqueza gerada no território, especialmente a partir de 2005. O que mais me perturba, por um lado, é a forma muito pouco atenta com que se tem olhado para os problemas sociais e, por outro lado, para as questões de natureza ambiental. O Papa Francisco, na encíclica “Laudato Si”, chama exactamente à atenção dos problemas que decorrem do desequilíbrio ambiental e dos reflexos que também têm nas questões de natureza social. E o que nos últimos anos tenho visto por parte do Governo de Macau é uma grande falta de atenção relativa às questões sociais e ambientais.
CL – Pode dar-nos um exemplo flagrante?
S.A.C. – Após aquela proposta dos Serviços de Saúde para aumentar drasticamente as taxas moderadoras dos partos [no hospital público] para as não-residentes, e das reuniões do secretário para os Assuntos Sociais e Cultura [Alexis Tam] com associações de migrantes das Filipinas e da Indonésia, prometendo-lhes expressamente que a sua situação seria tomada em consideração e que os aumentos situar-se-iam apenas no triplo, ficámos a saber que afinal não é bem assim, porque somente as trabalhadoras não-residentes que recebem menos de quatro mil e 50 patacas vão poder beneficiar de uma redução, tendo em conta a tabela oficial aprovada pelos Serviços de Saúde. Isto é uma perfeita aberração porque o secretário para os Assuntos Sociais [e Cultura] coloca-se numa posição a todos os níveis criticável. Não se trata apenas de fazer promessas. Trata-se de ter feito declarações expressas a associações, que abrangem pessoas a viver em condições difíceis e que são das mais desfavorecidas desta sociedade. Prometeu o que uma vez mais não vai poder cumprir. É algo terrível a forma como se tem olhado para a situação dessas pessoas.
CL – Num exercício de comparação entre os Governos de Edmund Ho e de Chui Sai On, o que melhorou e o que piorou em termos políticos?
S.A.C. – Em relação ao que aconteceu no tempo de Edmund Ho, não vou pronunciar-me porque na altura não estava em Macau, à excepção de um curto período do seu mandato. Quanto à acção do actual Chefe do Executivo, acho que é altamente negativa. Penso que as próprias condições do exercício de poder do actual Chefe do Executivo têm vindo a degradar-se e a piorar. Neste momento estamos praticamente com um Governo de junta…
CL – Não de junta militar…
S.A.C. – Não é militar, embora com alguns laivos sultanescos, devido à acção do próprio secretário para a Segurança [Wong Sio Chak]. O Chefe do Executivo praticamente desapareceu da cena política. Infelizmente, também as suas condições de saúde parecem não ser as melhores, o que talvez esteja a perturbar o desempenho do Governo de Macau. Quem vemos diariamente a actuar são os seus secretários, designadamente o secretário para a Segurança, a secretária para a Administração e Justiça [Sónia Chan] e Alexis Tam. Fundamentalmente são estes. A acção de Lionel [Leong, secretário para a Economia e Finanças] é mais discreta, embora entre todos eles seja porventura o secretário com uma acção mais eficaz.
CL – Há o Fundo de Pensões e o Fundo de Segurança Social, que abrangem vários regimes. Tendo em conta as experiências de outras jurisdições, não é chegado o momento de se criar um regime uniformizado que abranja toda a população?
S.A.C. – É o que faz sentido! Todavia, o que acontece em matéria de Segurança Social em Macau, e o atraso na reforma das suas instituições e do seu regime, também ocorre noutras áreas, designadamente na área fiscal, tributária, com legislação em vigor há mais de trinta anos que ainda hoje aguarda uma reforma de fundo. São várias áreas de acção governativa que precisam de uma reforma de fundo. Continuo a não perceber como é que num território tão rico como é Macau, e com os meios financeiros que o Governo tem à disposição, ainda não foi feita por exemplo uma revolução informática nos tribunais. Mas por que é que os advogados continuam a entregar as suas peças [processuais] em papel? Embora Portugal não tenha os mesmos meios que Macau, já fez essa reforma nos tribunais e acabou com o papel – portanto, as peças vão todas para os tribunais por via electrónica.
CL – O empresário Kevin Ho afirmou recentemente não haver especulação imobiliária em Macau. Se assim fosse, as novas gerações não se sentiriam obrigadas a viver em casa dos pais ou a dividir casa com amigos ou colegas de trabalho…
S.A.C. – Penso que o empresário Kevin Ho vive noutro mundo. Não é neste em que nós vivemos. Não são, evidentemente, declarações de uma pessoa que viva em Macau como qualquer outro cidadão. Quando as pessoas têm responsabilidades, como é o caso dele do ponto de vista empresarial, não podem fazer afirmações como a que ele fez, porque além do mais é uma ofensa a todas as pessoas que trabalham e passam dificuldades em Macau.
CL – O mesmo empresário afirmou também que não concorda com uma lei sindical. Terá o Executivo coragem para avançar com legislação nesse sentido?
S.A.C. – Não sei se vai ter coragem, mas já devia ter tido há muito tempo, porque as matérias de natureza laboral e sindical estão previstas na Lei Básica. O mesmo afã que o Governo coloca agora na regulação/desenvolvimento do artigo 23º também devia ter posto noutras matérias que estão contempladas na Lei Básica. Não sei se vai ser possível fazer isso, dado o peso e a proximidade de alguns grupos económicos e do patronato junto do Poder e que funcionam como grupos de pressão. Estão dentro da própria Assembleia [Legislativa] e a sua proximidade ao Poder não augura facilidades na aprovação desse tipo de legislação.
CL – É bastante mais fácil uma intenção legislativa elaborada pelo Governo ser aprovada na Assembleia Legislativa do que, por exemplo, de deputados como Pereira Coutinho…
S.A.C. – Sabendo-se qual é a composição da Assembleia, normalmente o que é do Governo é para ser aprovado. E só não é aprovado na Assembleia quando há resistência da opinião pública, como aconteceu com a proposta de lei do Governo relativa ao regime dos benefícios dos titulares de cargos políticos porque as instituições de Macau foram para a rua. Se não o tivessem feito, evidentemente que [a proposta] tinha passado porque a Assembleia funciona apenas como um carimbo, uma chancela para aquilo que o Governo pretende fazer.
CL – Para além do glamour dos casinos há ainda uma considerável franja da sociedade que vive em dificuldades. Acredita que o aumento dos salários e das ajudas sociais são suficientes para minimizar os problemas destas pessoas?
S.A.C. – Não me parece. Em Macau vive-se uma situação que vai para além do chamado capitalismo desenfreado. Sem uma intervenção reguladora do Governo de Macau não é possível encontrar soluções. Até agora, a acção do Governo na área da especulação imobiliária tem sido equivalente à de um placebo. O placebo é um produto sem propriedades farmacológicas que pode ter algum efeito psicológico. Portanto, não resolve o problema.
PEDRO DANIEL OLIVEIRA