PADRE CYRIL LAW JR.
Falta traduzir a Bíblia para Cantonense
É considerada a versão chinesa da Bíblia por excelência, mas a tradução das Sagradas Escrituras feita pelo Studium Biblicum Franciscanum está cada vez mais desfasada da realidade da China. O texto, publicado em Hong Kong há cinquenta anos, é um bom instrumento de estudo para quem quer aprofundar o conhecimento da Palavra de Deus, mas falha por completo como mecanismo de evangelização. O padre Cyril Law Jr., que defende que a Igreja deve fazer um esforço para traduzir a Bíblia para os diferentes dialectos do Chinês, explica porquê.
O CLARIM – Por que razão a tradução da Bíblia feita pelo Studium Biblicum é tão importante para os católicos de língua chinesa?
PE. CYRIL LAW JR. – Esta tradução ofereceu-nos pela primeira vez um sustentáculo consensual para a Liturgia. Temos finalmente para a Missa e para os Sacramentos uma tradução católica da Bíblia universalmente aceite e que acaba com a confusão que existia, nomeadamente no que toca à terminologia, ao nome dos santos e a outros detalhes. No entanto, a tradução feita pelo Studium Biblicum foi adoptada de uma forma muito diversa e a sua aceitação não é assim tão universal quanto isso. Os Missais usados em Taiwan, Hong Kong, Macau e no Continente fazem diferentes usos desta Bíblia porque têm de ter em conta as diferenças regionais em termos de pronúncia e as variações de dialecto para dialecto. Em Taiwan, os nomes dos profetas e dos apóstolos não correspondem totalmente aos nomes adoptados na tradução do Studium Biblicum. Os Salmos também não correspondem à forma como foram traduzidos. Em cinquenta anos a língua mudou muito. Muitos dos termos utilizados ou mesmo o tom das expressões já são arcaicos…
CL – É necessária, então, uma versão revista da tradução do Studium Biblicum? Ou uma tradução inteiramente nova?
C.L.J. – Para que a evangelização seja eficaz, necessitamos que a Bíblia seja traduzida para o diferentes dialectos do Chinês. Não temos uma versão em Cantonense da Bíblia. Na verdade, quando alguém assiste a uma Missa em Cantonense, não está de todo a assistir a uma Eucaristia em Cantonense. Está perante um texto em Mandarim, escrito de acordo com as regras gramaticais do Mandarim, mas a ser pronunciado em Cantonense. É uma língua alienígena. Ninguém fala assim. É como se tivesse um texto em Latim e o tentasse ler em Português, mas com pronúncia francesa. É uma loucura. Não é, de todo, assim que a evangelização funciona. O aspecto mais importante da tradução da Bíblia para Chinês conduzida pelo Studium Biblicum é o facto de constituir uma boa base; é uma espécie de “Vulgata” para a língua chinesa. Necessitamos de outras versões da Bíblia, sejam elas em Cantonense, Fukinense ou Hakka.
CL – Esse trabalho já está a ser feito?
C.L.J. – Na minha opinião? Não. Falo por experiência própria. Não tomo muito a sério nenhuma das leituras que escuto na Missa, pura e simplesmente porque se trata de um texto em Mandarim pronunciado em Cantonense. Dificilmente retenho algumas das frases ou alguns dos ensinamentos que são lidos na Missa, porque quem fala Cantonense não fala desta maneira. O que é assimilado é a mensagem das Escrituras que é debatida na homília ou transmitida durante a catequese. A versão da Bíblia do Studium Biblicum é um texto autêntico, fiel à ortodoxia da Igreja, mas é válido sobretudo para reflexão e para propósitos académicos. Mas enquanto mecanismo de evangelização, de inculturação na Liturgia, só é eficaz em locais onde o Mandarim é a língua materna dos fiéis, sendo que a maior parte dos chineses tem um dialecto como língua materna. Tirando quem vive em Pequim, a maior parte das pessoas no Continente fala outra coisa qualquer que não Mandarim.
CL – A tradução conduzida pelo Studium Biblicum é, ainda assim, um importante instrumento teórico. Daí ter sido adoptada pela Igreja Oficial no Continente?
C.L.J. – A diocese de Xangai tem a sua própria tradução. O bispo Jin promoveu a sua própria tradução da Bíblia. Basicamente, há duas traduções de referência a serem usadas. No entanto, como lhe dizia, desde há quinze ou vinte anos, o Missal que é utilizado é produzido em Taiwan, e as suas leituras não coincidem a cem por cento com a versão do Studium Biblicum. O que ouve na Missa não é exactamente o mesmo que escutaria se eu lhe lesse uma passagem desta Bíblia. Isto significa que, mesmo na China Continental, a tradução do Studium Biblicum é utilizada para o estudo e para reflexão privada, mas a perspectiva utilizada na liturgia pública é diferente.
CL – Mas é uma referência para os católicos chineses?
C.L.J. – É verdade. Não nos podemos esquecer que cada um dos livros que foram publicados se fazia acompanhar por anotações. Este é um aspecto muito importante, porque colocou em língua chinesa, junto com o texto, os frutos da exegese bíblica. Ofereceu aos católicos chineses pela primeira uma exegese sistemática da Bíblia, lado a lado com o texto, o que faz com que esta análise seja imediata. Os fiéis e os leigos podem interpretar as Escrituras com anotações autênticas e inteiramente alinhadas com a ortodoxia da Igreja.
CL – Antes desta tradução houve qualquer outro documento que se lhe assemelhasse?
C.L.J. – Sim. A minha tese de doutoramento foi exactamente sobre isso. Ma Xiang Bo foi um ex-jesuíta. Foi ordenado padre, mas decidiu abandonar o sacerdócio no final dos anos de 1870. Sozinho, traduziu os Quatro Evangelhos em Chinês literal. Há um aspecto curioso: Ma Xiang Bo só fez uso de palavras e caracteres utilizados na altura em que os acontecimentos narrados nos Evangelhos se materializaram, o que é algo pouco habitual e um tanto ou quanto peculiar. Para além desta tradução literal, ele retraduziu em simultâneo a Bíblia com uma abordagem coloquial. A tradução dos Evangelhos feita por Ma Xiang Bo tem a tradução chinesa literal e a tradução coloquial na mesma página. Este facto mostra até que ponto o Chinês é uma língua em constante evolução. Seja qual for a época, a língua terá sempre uma expressão mais literária e uma expressão corrente e coloquial.
CL – Meio século depois de ter sido publicada, a versão do Studium Biblicum Franciscanum mantém-se relevante?
C.L.J. – Podemos atestar da relevância desta tradução comparando-a com o Concílio Vaticano II. O Concílio terminou fez este ano cinquenta anos. Continua a ser relevante para nós? Sim. Mas em cinquenta anos novos problemas emergiram. Há cinquenta anos, quando as Missas ainda eram quase por inteiro ministradas em Latim, o uso de línguas vernáculas correspondia essencialmente à interpretação da leitura dos Evangelhos, mas isso era a função pela qual os padres eram responsáveis na homilia. Que necessidade havia de se ler a Bíblia? Essa necessidade surgiu quando um número crescente de leigos começou a demonstrar interesse por estudar Teologia. Parece-me que esta tradução se foi tornando mais e mais relevante à medida que cada vez mais leigos começaram a estudar Teologia e os estudos religiosos se começaram a popularizar.
Marco Carvalho