O Milenarismo
«Quando se cumprirem os mil anos, Satanás será solto da sua prisão / e partirá para seduzir as nações dos quatro cantos do mundo, a Gog e Magog, a fim de os reunir para a batalha». No último livro da Bíblia, o Apocalipse (20,7), surge esta frase. Como outras mais. E na cabeça de tantos cristãos, muitos mais temores, crenças e anseios, medos e dramas surgirão. Cada um multiplicado por tantos e insuflado de ignorância ou crendice, de inocências pastoris e discernimentos incipientes, resultarão em pânico, em turbas de gente ensandecida e em heresias. E a espiral recomeça e repete-se, mas cada vez mais intensamente. Porque o milénio da Encarnação aproximava-se. Inexorável. O ano Mil, ano de todos os medos, de todas as interpretações, de todas as ignorâncias. O pavor escatológico de uma heresia a que chamamos hoje de Milenarismo. Mais do que uma heresia, foi um regressão cultural e mental colectiva. Por falta de uma fé esclarecida, de cultura cristã e de ensinamento.
O Milenarismo é considerado como uma teoria herege, presente ainda hoje em alguns sectores protestantes mas anda também na Igreja Católica. Radica na segunda metade do primeiro milénio da era cristã, ou seja, antes do ano Mil, o zénite temporal de todas as profecias.
Esta teoria escatológica (fim do mundo) profetiza a vinda do Demónio após mil anos do nascimento do Senhor. Solto, viria (virá, segundo alguns) tentar a Humanidade e encaminhá-la à perdição. Mas não é tudo maligno, nem tudo está perdido. Para os milenaristas, os que ultrapassarem os Três Dias de Trevas, serão arrebatados e devolvidos à Terra com o seu corpo glorificado, à semelhança de Cristo, passando a habitar o Reino de Jesus Cristo, que se implantará sobre toda a Terra, passando todos a conviver com os eleitos referidos em Apocalipse 20,4-6, que reinarão com Cristo por «mil anos». Durante estes «mil anos» viver-se-á num Paraíso semelhante ao de Adão e Eva, mas com os corpos glorificados. Assim reza o Milenarismo. Assim se pregava antes do ano Mil da era cristã. Assim se acreditava e vivia, numa angustia de espera e de temor do fim dos tempos.
O Milenarismo afirma que os «mil anos» de que falam os versículos do Apocalipse 20,7-10 são para ocorrerem depois da Vinda Gloriosa de Jesus, durante os quais se viverá o Reino de Jesus Cristo. Mas, naturalmente, a leitura literal da Bíblia, em particular do Apocalipse, suscitou desde sempre “interpretações” incorrectas e falaciosas. O Milenarismo apocalíptico e escatológico, tenebrista e fatalista, não é mais do que uma angustiosa e errónea interpretação dos textos bíblicos. Fatal, sim, para todos os que acreditaram e acreditam…
O referido excerto do Apocalipse, reconsideremos, que refere os «mil anos», não significa que ao fim de mil anos, depois da Encarnação, o demónio será solto para tentar de novo a Humanidade e espalhar o mal e a destruição, o pecado enfim. O Milenarismo corresponde a uma errada interpretação bíblica, que ainda hoje é muito sustentada por grupos cristãos como as Testemunhas de Jeová, algumas Igrejas protestantes e também alguns católicos menos esclarecidos, ou mais “tradicionalistas”. A Igreja interpreta esses mil anos como o período que se inicia imediatamente após a morte de Jesus Cristo, mas sem quaisquer interpretações escatológicas. Santo Agostinho e outros autores dão como início desses mil anos a Ressurreição, mas sem entrar em interpretações.
Heresia milenarista
A teoria do Milenarismo é repudiada pela Igreja Católica, que a considera uma heresia. Muitos hereges o defenderam, muitos caíram no seu erro, principalmente na Idade Média, após o ano Mil. Enunciaram teses que redundaram em erros, impactantes até hoje, mas logo condenados no IV Concílio de Latrão em 1215, impulsionado pelo Papa canonista Inocêncio III. O simples facto de se referir os mil anos como uma época futura e que culminará com a libertação do demónio, tal já é considerado Milenarismo e, portanto, heresia.
Apocalipse significa “revelação”. É o último livro da Bíblia. Por isto, muitos veem aqui uma dimensão escatológica, de últimos fins do Homem e de triunfo do mal. Assim, ou pior, entendiam muitos antes do ano Mil. A Besta pairava nas mentes obscurecidas pela crendice. Algumas interpretações mais esclarecidas não viam na Besta sinónimo de diabo, mas apenas do mal. Que até pode ser o imperador de Roma, pagão e politeísta, idólatra e perseguidor. O fim do mundo e o juízo final são entendidos de forma catastrófica, empolada e confusa nas teses milenaristas. A vitória sobre a Besta e o Anti-Cristo, o triunfo de Cristo e dos Santos surgem também por oposição no Apocalipse, mas são secundarizados pelas profecias catastrofistas dos hereges.
Já no Judaísmo existia uma corrente apocalíptica, em Daniel, por exemplo, ou no apócrifo Henoc. O texto bíblico segue um pouco essa linha, mas dentro de uma esfera mais espiritual religiosa, nunca destrutiva, antes salvífica. Muitos cristãos, logo na era pós-apostólica, se embrenharam nessas seitas apocalípticas judaicas, e provavelmente terão sido a semente do Milenarismo que foi crescendo, optando por significações literais nas descrições do Apocalipse. Que ganharam então foros de “realidade”, de “autenticidade”, um rastilho para o medo e a insegurança, para a heresia e o conforto das suas soluções, mas apenas para alguns, os eleitos e “justos”, perfeitos e intocáveis. Por isso, o Milenarismo disseminou-se no mundo cristão antes do ano Mil, a par de outras múltiplas heresias. E passará para a Idade Média, como se verá mais tarde.
A ideia do advento de um milénio era por demais uma tentação para muitos cristãos. Santo Agostinho refutou todos os cálculos de quando chegaria essa era ou idade. Afirmou que Cristo tivera o cuidado de não especificar datas sobre a sua segunda vinda ao Mundo, pois apenas o Pai conhece o momento, apoiando-se em Mateus (24,36). Mas nem todos leram ou entenderam Agostinho. Os falsos messias surgirão, mesmo que o Apocalipse revele que antes do Juízo Final surgirá um Anti-Cristo, que enganará a muitos mas que será um sinal do advento do fim dos tempos.
O mundo caminhava para o ano Mil. Por todo o lado enxameavam teorias, de desgraça e fim do mundo, por fogo, já que a Humanidade sobreviveu às águas do Dilúvio. Estamos na Páscoa, tempo de “passagem”. Não para as trevas do medo ou da incúria. Antes para a redenção e para a esperança, para um mundo melhor.