Caridade como amor ao necessitado mais próximo

Caridade como amor ao necessitado mais próximo

No primeiro dia do terceiro milénio, São João Paulo II disse: “No início do século, a questão que mais desafia a nossa consciência humana e cristã é a pobreza de incontáveis milhões de homens e mulheres” (Mensagem do Dia Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 2000, cf. Bento XVI, Deus caritas est). É vergonhoso e injusto que, num mundo rico, a pobreza continue inabalável.

O amor cristão, ou caridade, é o amor divino – o amor de Deus nos nossos corações – e o amor fraterno: Deus é nosso Pai e todos nós somos seus filhos e, portanto, todos somos irmãos e irmãs em Jesus. O amor fraterno é a marca registrada dos discípulos de Jesus. O amor fraterno é universal, não selectivo: «Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros» (Jo., 13, 35).

O ensinamento sobre o destino universal dos bens da terra baseia-se nas Sagradas Escrituras, onde vemos claramente que Deus está preferencialmente do lado dos pobres, dos oprimidos e dos marginalizados. No final, Jesus ensinou-nos que seremos julgados pelo nosso amor aos pobres e necessitados (cf. Mt., 25, 31-46). Este amor fraterno universal centra-se, porém, num amor especial pelo próximo pobre, chamado, desde o final da década de 1960, de opção preferencial ou amor pelos pobres.

No plano teórico, continuamos a falar deste amor preferencial, que muitas vezes é negado no plano prático por um estilo de vida supérfluo, consumista e desperdiçador. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a prática da justiça-amor é dirigida principalmente aos pobres e marginalizados. No Antigo Testamento, particularmente na tradição profética, vemos Deus – o Deus da justiça e da misericórdia – do lado dos pobres e necessitados: “Ele fará justiça aos pobres” (cf. Is., 58, 6-10; Am., 8, 4-7; 1 Jo., 3, 17).

A pobreza de Jesus é a pobreza do ser, a “kenosis”: «Esvaziou-se a si mesmo, assumiu a forma de servo e nasceu à semelhança dos homens» (Fl., 2, 7); «Sendo rico, tornou-se pobre por nossa causa» (2 Cor., 8, 9). A pobreza de Jesus é também a pobreza do ter. Cristo nasceu, viveu e morreu pobre, e estava próximo dos pobres, dos pobres material e socialmente. Jesus, o Filho de Deus e o Homem para os outros, convida todos os seus seguidores a viver com sobriedade e a amar os pobres: “O convite [ao jovem rico] ‘vai, vende tudo o que tens e dá o dinheiro aos pobres’ e ‘terás um tesouro no céu’ [Mt 19, 21] é dirigido a todos” (cf. João Paulo II, Veritatis Splendor). Portanto, gastos excessivos e esbanjamento são pecados (cf. Compêndio do Catecismo da Igreja Católica n.º 2409). O Papa Francisco perguntou: A pobreza de Jesus Cristo é nossa fiel companheira de vida?

Os Apóstolos estavam comprometidos em ajudar os pobres e pediram a Paulo que fizesse o mesmo: “Eles [os Apóstolos] pediram apenas uma coisa, que nos lembrássemos dos pobres, o que era, na verdade, o que eu estava ansioso por fazer” (cf. Gal., 2, 10).

Os Padres (Pais) da Igreja praticavam e ensinavam a todos os cristãos o amor especial pelos pobres como uma opção ou amor obrigatório. Lembro-me das palavras comoventes de São Basílio: Quem tira as roupas de um homem é um ladrão. Quem não veste o indigente quando pode, merece um outro nome, que não seja o de ladrão? O pão que guardas pertence ao faminto; ao nu, o casaco que escondes no teu armário; ao descalço, os sapatos que estão empoeirados na tua casa; ao necessitado, a prata que escondes. Em resumo, ofendes todos aqueles que podes ajudar.

A Igreja opta preferencialmente pelos pobres: “Os cristãos têm de levantar a voz em nome de todos os pobres do mundo”. A opção preferencial pelos pobres implica não só uma ajuda afectiva, mas também um amor efectivo por eles, ou seja, “aproximar-se deles para que a mão que ajuda não seja vista como uma esmola humilhante, mas como uma partilha entre irmãos e irmãs”. “Devemos, portanto, garantir que em todas as comunidades cristãs os pobres se sintam em casa” (cf. João Paulo II). É também a opção que deve permear a apresentação e o estudo da verdade cristã (cf. Papa Francisco, Veritatis gaudium; cf. Gaudium et spes n.º 69).

Qual é o significado da opção preferencial pelos pobres? “Opção”, significa decisão e compromisso a favor dos pobres. Não é uma opção opcional, mas obrigatória para todos os discípulos de Jesus. “Preferencial”, significa a escolha dos pobres como prioridade do testemunho cristão de justiça e solidariedade, um testemunho necessário para a salvação. “Pobres”, significa os economicamente pobres e os socialmente pobres – os marginalizados, os oprimidos, os explorados. Certamente, existem “os espiritualmente pobres”. Algumas pessoas ricas gostam de misturar os dois: “nós também somos pobres”. Assim, domesticam o radicalismo evangélico do amor preferencial pelos pobres.

Podemos dizer que as implicações da opção pelos pobres são três: pobreza de espírito, um estilo de vida simples e solidariedade com os pobres. A pobreza de espírito (cf. Mt., 5, 3) é uma condição do discipulado cristão, um verdadeiro sinal da identidade cristã, que implica o poder de reconhecer Jesus nos pobres. Palavras para reflectir: “Ninguém tem o direito de viver como o homem rico, quando Lázaro está à porta” (W. Barclay).

A pobreza de espírito leva a um estilo de vida simples (cf. Lc., 12, 22-34; 1 Tm., 6, 8): Vivamos com simplicidade para que outros possam simplesmente viver (Bispos Canadianos); “Ninguém pode ser pobre de espírito enquanto vive como o homem rico” (J. L. Martin Descalzo). Um estilo de vida simples leva à solidariedade com todos, particularmente com os necessitados e os pobres (cf. Ez., 16, 49; Ga., 2, 10). Solidariedade significa amor compassivo: estar unido aos pobres em fraternidade e partilhar algo com eles. Não há muito tempo, conversei com uma pessoa que pedia esmola à porta de uma igreja. Aceitava com calma não receber nada de alguns, mas não conseguia entender por que muitos deles não respondiam à sua saudação: «– Como se eu estivesse a falar com a parede».

O amor ao próximo necessitado é a prioridade, a característica distintiva de todos os seguidores de Jesus, “o grande critério” da santidade também hoje (cf. Papa Francisco, Gaudete et exsultate). É o apelo de Cristo a todos os cristãos e pessoas de boa vontade: “Tive fome e destes-me de comer…” (cf. Mt., 25, 35-36). Este apelo implica concretamente – nas palavras do Papa Francisco – defender as crianças por nascer e as crianças nascidas e, igualmente, a vida de todos os pobres: os indigentes, os abandonados e os enfermos vulneráveis, e [pela primeira vez ouvi esta expressão pungente] “os idosos expostos à eutanásia dissimulada”, os migrantes e os estrangeiros.

Os cristãos, em geral, rezam muito e tentam rezar bem. No entanto, não há verdadeira oração sem justiça/amor. Os grandes profetas do Antigo Testamento proclamaram que a adoração sem justiça não é verdadeira adoração (ver Oséias 6, 6 e Mt., 9, 13). O Profeta Jesus de Nazaré continua a ensinar-nos que a oração sem justiça/amor não salva: “O que fizestes ao menor dos meus irmãos e irmãs, a mim o fizestes” (cf. Mt., cap. 25). Numa das frases do Pai Nosso, pedimos ao nosso Pai: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. O nosso pão de cada dia é o Pão da Eucaristia, e também o pão necessário aos nossos corpos (ao meu, ao teu e aos corpos dos pobres). “A petição da Oração do Senhor não pode ser isolada das parábolas do pobre Lázaro e do Juízo Final”.

A Sagrada Eucaristia é o centro da nossa vida cristã, que não é apenas celebração, mas também compromisso com os pobres e necessitados: a Eucaristia é um apelo à caridade, à compaixão e à solidariedade com os pobres: “Se queres honrar o corpo de Cristo, não o desprezes quando Ele está nu” (São João Crisóstomo).

Em Novo Millennio Ineunte (2001), João Paulo II escreveu palavras poderosas e inovadoras sobre o amor preferencial pelos pobres: Não praticar o amor preferencial pelos pobres é uma espécie de heresia – não contra a ortodoxia, mas contra a ortopraxia. O Papa polaco lembra-nos que, “por estas palavras [a Parábola do Juízo Final], não menos do que pela ortodoxia da sua doutrina, a Igreja mede a sua fidelidade como Esposa de Cristo” (NMI n.º 49).

Um último ponto: no contexto actual da ideologia das alterações climáticas (“a religião das alterações climáticas”, onde Deus Criador parece ser substituído pela mãe terra), é importante lembrar que o clamor da terra está intimamente ligado ao clamor dos pobres. O que mais se precisa é do amor pelos mais pobres, “a espécie mais ameaçada da terra” (L. Boff).

Pe. Fausto Gomez, OP

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *