O inebriante thandaie um santo sufi
Não poupa diatribes, o padre António Monserrate, quanto a Baba Kapoor e ao seu comportamento em vida. Mesmo sabendo que na morte fora honrado com o título de santidade e merecedor de um templo associado à sua sepultura, muito frequentada por romeiros e pelo menos trinta dos seus seguidores em constante vigília, ou como diz o catalão, “dormindo ali, sem se preocupar com o dia seguinte”. Sempre num tom sarcástico, o jesuíta fala em “novo líder dos epicuristas” com inúmeros admiradores e seguidores, entre os quais muitos príncipes “e até o próprio Acbar”. Davam-se pelo nome de postinus, termo derivado de “post”, em Hindi: “semente de papoila”.
Se tentarmos identificar na Índia de hoje uma poção semelhante àquela criada por Baba Kapoor, o mais próximo que encontramos, e só no Norte do País, é o “thandai”, bebida gelada à base de amêndoas, erva-doce, grãos de melancia, pétalas de rosa, pimenta, cardamomo, açafrão, leite, açúcar e, claro, sementes de papoila. Encontra-se associado o “thandai” a eventos como o “Holi” mas também o Maha Shivaratri, festividade em homenagem a Shiva, “deus da destruição”. Entre as variantes mais comuns temos o “badam thandai” (com mais amêndoas do que o habitual) e o “bhang thandai”, este duplamente intoxicante pois mistura sementes de papoila com folhas de canábis, havendo, neste caso, variante à base de iogurte: o “bhang lassi”. No seu “Colóquios dos Simples e Drogas da Índia” (1563), o conhecido médico de origem judaica Garcia de Orta dedica muitos parágrafos ao bangue, mencionando o seu uso recreativo entre os notáveis. O caso de Bahadur Shah, rajá do Gujarate, e também de inúmeros portugueses anónimos. Curiosamente, Orta rejeita qualquer similaridade entre a planta indiana que produz o bangue e a congénere europeia responsável pelo cânhamo, apesar de serem uma só.
Quanto à tentativa de identificação do fabuloso túmulo de Baba Kapoor, o local onde repousam os ossos do santo sufi Muhammad Ghawth é o sinal mais próximo que consigo obter. Nascido em 1500, em Gwalior, este Muhammad foi também músico e autor da Jawahir-i-Khamsa (“As Cinco Jóias”), obra escrita quando tinha 25 anos apenas. Traduziria o Amrtakunda do Sânscrito para o Persa, intitulando-o Bahr al-Hayat (“Oceano da Vida”), introduzindo assim no Sufismo um conjunto de práticas de ioga. Louva-lhe a subtileza o especialista de estudos islâmicos Carl W. Ernst, pois encontrou em Ghawth “pontos de contacto entre as terminologias do ioga e do Sufismo”. Em 1549, com cinquenta anos de idade, estabelece-se em Ahmedabad onde funda a mesquita Urf Ek Toda e prega o Sufismo de tradição shattari durante uma década. Após a sua morte, em 1562, Muhammad Ghawth “ascendeu ao céu” e de lá envia ajuda a todos os que o consideram “pivô do universo”.
É a vez da comitiva onde se integram os nossos jesuítas deixar Gwalior, tocando dias depois as margens do rio Chambal, cuja importância estratégica não esquece de realçar Monserrate. Antes das muralhas de Bolpur, serve o curso fluvial de marca divisória das províncias de Malwa e Deli, rivais antes de as unificar o senhorio mogol. Ajuda, e de que maneira, a topografia da região que, como nota Monserrate, “embora pareça ser de longo alcance, plana e aberta para aqueles que a olham de longe”, é na realidade acidentada, “com desfiladeiros repentinos e ravinas profundas”. Caso alguém se desviasse do caminho, corria grave risco de só poder voltar a ele após um largo desvio “por trilhas acidentadas e excessivamente estreitas”, e isto, claro, se entretanto não caísse nas mãos do inimigo ou de bandidos.
Agra está apenas a dois dias de caminho, e é da capital do império que o embaixador conduz os padres a Fatehpur Sikri, onde residia Acbar. Ao avistarem-na ao longe agradecem os viajeiros “ao Deus Eterno que os trouxera a salvo até ao seu destino”, contemplando com o maior deleite o “grande tamanho e a aparência magnífica” do que tinham à sua frente. Tornam-se, como é óbvio, o centro de atenção da população que, surpresa e perplexa, questiona qual a origem de tais homens desarmados de aparência estranha, “com as suas longas túnicas negras, os seus curiosos gorros, os seus rostos barbeados e as suas cabeças tonsuradas”.
Em jeito de conclusão, Monserrate destaca a seguinte particularidade geográfica: da costa para norte assiste-se a uma progressiva elevação do terreno, uma sucessão de terraços “como os que se vêem em jardins colocados numa encosta”. Depois, chama a atenção para a destruição dos templos hindus, “que costumavam ser muito numerosos”, pelos muçulmanos. Que, não obstante, permitem que os sacrifícios sejam ainda executados publicamente, o incenso oferecido, os óleos e os perfumes derramados, e o solo borrifado com flores e coroas penduradas – não só nas ruínas desses antigos templos como em qualquer outro lugar, pejados com fragmentos dos ídolos. Surgiram entretanto no lugar dos templos “tumbas e pequenos santuários”, onde eram venerados “certos muçulmanos”, como se de santos se tratassem. Lamenta o padre aqueles que “– para a destruição de suas almas – reverenciam os vícios em vez das virtudes, os crimes em vez dos milagres, os miseráveis abandonados em vez dos santos”.
Joaquim Magalhães de Castro