Da inefável tentação da mentira…
Os feriados do Ano Novo Lunar, associados às medidas de prevenção do vírus de Wuhan, fizeram de Macau uma cidade um pouco “recuada” no tempo, no que se refere à animação nas ruas ou à falta dela, neste contexto passageiro que todos desejamos o mais breve.
Mas como o mundo não pára, nem os media fecham para almoço ou para descanso nocturno (as televisões como as “conveniences” obedecem à matemática inexorável dos 24/7), nunca deixei de estar em contacto com o mundo exterior nestes dias de quarentena algo voluntária, no que não fui nada original, pois todos fizemos rigorosamente o mesmo.
Uma minha familiar mais dada à literatura dizia-me há dias que a situação lhe fazia lembrar a da famosa obra de Albert Camus “A Peste”, em que uma situação anómala foi pretexto dado ao personagem para revisitar todos os conceitos fundamentais, “fundacionais” da sua existência.
Ou o “Ensaio sobre a Cegueira” de Saramago, onde os subitamente invisuais vêem as respectivas consciências iluminadas por alguma clarividência especial.
Não cheguei ao extremo de tal exercício interior porque, movido pela insaciável curiosidade do que ia acontecendo lá fora, pouco tempo me dei para o que acontecia cá dentro (de mim), matando assim na raiz qualquer veleidade de digressão filosófica até aos subterrâneos da existência humana.
Interessei-me por outras coisas.
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“– Não, isso para já não é verdade. Você está a distorcer tudo!”.
“– Isso simplesmente não aconteceu, é pura invenção!”.
“– É mentira, eu nunca poderia ter dito isso!”.
“– Está a faltar à verdade, não foi dessa forma que as coisas se passaram. Nunca disse nada disso”.
Parecem familiares estas expressões? Extraídas eventualmente de um diálogo de rua, de uma conversa anódina, de um debate na televisão?
Vou ser intencionalmente pueril no que vou dizer, mas noto que tenho pensado mais, ultimamente, na “eficácia” imediata da mentira, tanto nas relações entre pessoas individuais, como na política e na vida internacional. Basta negar a realidade dos factos para que estes sejam ocultados, ao sabor dos interesses daqueles a quem a mentira aproveita. Repito: tudo isto é tão óbvio e mesmo algo infantil que não merecia ser sublinhado. Mas…
A ocultação da verdade tem sido tão praticada, desde sempre, e com tanto proveito próprio, de indivíduos privados, personalidades oficiais, organizações, Governos que, fazendo uso das novas tecnologias, se vem constituindo mesmo e prospera cada vez mais a indústria, eu diria mesmo a arte, da in-verdade, a desinformação, com seus métodos cada vez mais sofisticados e seus alvos, suas vítimas preferenciais.
Sabe-se cada vez melhor que, de tanto repetida, uma falsa verdade se transforma, na cabeça de cada um, em verdade… verdadeira. Nessa característica, nessa vulnerabilidade do ser humano, se baseiam todas as formas de propaganda, desde as puramente comerciais, para condicionamento dos consumidores, “orientando” as suas escolhas, à propaganda política, condicionando o sentido crítico dos eleitores, por exemplo.
As cadeias de supermercados, de forma semelhante ao que fazem regimes e partidos políticos, não prescindem da sua propaganda, a que as primeiras apelidam eufemisticamente de “publicidade” – que na sua forma objectiva e neutra deveria querer dizer apenas “tornar público, divulgar”.
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Quem se detenha a folhear o relatório de Robert Mueller, reportado às ingerências na campanha eleitoral de Trump, em 2016, fica admirado ao ver quão sofisticadas são hoje as formas de manipular a percepção que cada um vai tendo do seu contexto imediato, chegando-se ao ponto de se criarem artificialmente conflitos sociais que não existem ou que são enganosamente extremados, para perturbar os espíritos e influenciar a escolha de candidatos “salvadores”. Mentiras primorosamente concebidas por quem, nas diversas capitais do mundo, passou a fazer disso a sua profissão a tempo inteiro, em frente de um computador.
Como espalhar boatos sobre o estado de espírito geral das pessoas nas sociedades-alvo, como denegrir instituições, como afectar a integridade e a reputação de líderes, a tudo isso se alargou o vasto reino da in-verdade, criando nos inocentes receptores das mensagens sentimentos crescentes de insatisfação, que os conduzem a apelar à mudança, no sentido desejado por quem os telecomanda.
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Quando há dias vi Mike Pence, o Vice-Presidente dos Estados Unidos, a ser recebido pelo Papa Francisco, no Vaticano, e a gabar-se depois de o encontro ter durado uma hora, quando habitualmente as audiências duram metade desse tempo (“Vossa Santidade fez de mim um herói, só com o dar-me este tempo todo!”), pensei para comigo: Talvez te faça bem, talvez Francisco te possa pedir que sejas portador da mensagem decisiva para o “boss”, aquela que lhe permitiria desviar os olhos do espelho, onde costuma ver obsessivamente o seu ego em corpo inteiro.
O actual momento político americano constitui, pela singular personalidade do actor principal, um manancial quase inesgotável de ensinamentos, para quem quiser compreender hoje a Sociedade, a Política, e os desafios da Ética nesses dois domínios. A Sociedade nas suas fracturas. A Política na nudez cruel do poder. E a Ética nos efeitos dramáticos da sua ausência.
Donald Trump é ao mesmo tempo o artífice, o beneficiário e a vítima do retrato que de si próprio se criou ou favoreceu, baseado em in-verdades, não só sobre si próprio, na sua pretensa capacidade de liderança, mas na caracterização do mundo estranho em que se move, fruto da sua própria idiossincrasia.
Se nos lembrarmos, aliás, do discurso do Presidente americano, na tomada de posse, a sua descrição de uma América apocalíptica à sua espera, quer dizer, à espera de um salvador providencial, condiz com a imagem artificial e enganosamente criada de iminência do fim, aguardando a intervenção divina.
A MENTIRA É EFICAZ
Estas linhas não constituem obviamente o elogio mentira, mas exactamente o oposto, o da verdade. Mas a mentira está omnipresente nas relações individuais. E de forma algo extremista se pode argumentar que crescer, para o ser humano, tornar-se adulto, é aderir a convenções sociais que são formas cada vez mais interiorizadas de mentira, porque convém à sociedade o conformismo que daí resulta.
Assim, a instrumentalização da mentira é método de tal modo usado, nomeadamente praticado na vida individual, empresarial, internacional, que tem sido estudada academicamente. Vejamos o seguinte estudo. Tem como título “A Instrumentalização da Mentira na Política Internacional” e a co-autoria é dos académicos brasileiros Alexandre César Cunha Leite, Raquel Katllyn Santos da Silva. Qual a ideia principal do estudo?
Resumo: A instrumentalização da mentira na política internacional objectiva explica porque e como o engano é utilizado para a obtenção de vantagens políticas no cenário internacional.
A mentira é compreendida como uma ferramenta estratégica de poder estatal, apresentando razão e efeito na sua articulação em manobras políticas.
Assim, a mentira instrumentalizada com finalidades políticas demonstra-se comprovadamente estabelecida entre os Estados. Em vista das inúmeras especificidades da sua eficácia, é um instrumento subtil e dotado da racionalidade, decorrente dos cálculos de poder, os quais são intrínsecos à insegurança do sistema internacional anárquico.
Quer dizer: como no plano individual, os Estados (através dos seus dirigentes, naturalmente) mentem por medo. E mesmo quando mentem para obter vantagens decisivas sobre os outros Estados, é ainda o medo que os persegue.
Mentira: insegurança, medo – possuir mais, e com isso dominar melhor –, tudo história conhecida, não é?
Carlos Frota