Turistas ontem, agressores hoje

A metamorfose saudita.

Numa altura em que se verifica o envolvimento da Arábia Saudita – uma das mais fundamentalistas nações do planeta – na agressão a países como a Síria ou o Iémen, convém recordar como se comportava ela nos anos que antecederam a situação explosiva que se vive hoje nos territórios que foram outrora berço da nossa civilização.

Nos meses de Verão os países árabes do Médio Oriente, com especial incidência a Síria, eram literalmente invadidos por cidadãos da Arábia Saudita, desejosos de escapar ao forno que se acende na sua terra por essa altura do ano. Os protagonistas desse verdadeiro êxodo de Meca e arredores pertenciam a duas espécies bem distintas: os sauditas que partiam sem a família – geralmente solteiros – e os sauditas que levavam toda a família.

O automóvel era por excelência o meio de transporte utilizado, a justificar a reputada abastança destes antigos beduínos, cujo grau de riqueza antes da descoberta de petróleo se contabilizava pelo número de camelos. Mas também havia quem, talvez por míngua de recursos, utilizasse o transporte público para fazer turismo.

O destino favorito dos primeiros era conhecido. Damasco. Mais propriamente os hotéis nas imediações da Praça dos Mártires, mesmo no coração da capital. Apesar da sua aparente inocência, esses hotéis ocultavam um submundo que oferecia prostitutas a quem estivesse disposto a incluí-las no aluguer do quarto. É evidente que todos aqueles árabes de túnica e kefi não iam a Damasco apenas para se fazerem fotografar junto à conspurcada fonte da praça ou para comer os tradicionais gelados de limão.

Quanto aos segundos, os verdadeiros homens de família (pelo menos durante as férias) estavam por tudo quanto era sítio. E transportavam consigo, seja para as ruínas de Palmira, para a cidade portuária de Tartous ou para o magnífico mercado de Allepo, vultos negros a quem chamavam de esposas e filhas. Vultos que faziam parte da paisagem no estio sírio.

Obrigadas a trajar, mesmo em férias, a indumentária de todos os dias, as coitadas aguentavam estoicamente o intenso Sol horas a fio, quantas das vezes com filhos ao colo. Eles, barrigudos por norma, preferiam o branco reflector de calor, e havia até quem optasse pela camiseta e calção desportivo tão ao gosto dos novos-ricos. De câmara de vídeo em punho registavam tudo e eram o alvo predilecto dos guias, dos vendedores de postais e dos donos de camelos que se passeavam pelos locais mais visitados na esperança de encontrar quem quisesse dar uma voltinha ou fazer-se fotografar ao lado da alimária.

As mulheres sauditas com mais rédea, apesar do negro, mostravam o rosto e, eventualmente, lá calçavam uns sapatos mais altos e exibiam a tiracolo uma mala da Guess ou da Chanel. Podia mesmo acontecer – como houve oportunidade de constatar no interior das ruínas do fabuloso templo de Bel (uma das antigas divindades palmirenses, agora destruído) – quem olhasse o estrangeiro com um certo descaramento e perguntassem donde ele era.

«–Somos de Riadah, Arábia Saudita», informava a mais bonita delas aproveitando para fotografar o estrangeiro. A amiga chegara até a piscar-lhe o olho por várias vezes e sempre que podia deixava-se ficar para trás, olhando frequentemente na sua direcção.

Que fazer numa situação daquelas? Beleza não lhe faltava, charme tão pouco e sensualidade no andar, então muito menos, apesar da mortalha negra lhe esconder os contornos do corpo.

Entre estas turistas acidentais, totalmente condicionadas pelos movimentos do marido, havia as que até luvas eram obrigadas a calçar. Nos museus era vê-las erguerem os véus para poderem ler as informações e observar as peças expostas. Dentro das ameias do Castelo dos Cavaleiros – o mais impressionante exemplo da arquitectura militar dos cruzados em território sírio – as pobres viam-se árabes para segurar os panos que esvoaçavam à mercê das fortes rajadas de vento.

O topo da gama da perversão manifestava-se em algumas tribos beduínas do deserto, no Egipto, as quais não só obrigam as mulheres a utilizar purdha como lhes colocam em volta do pescoço e na cabeça artefactos em prata e outras pedras mais ou menos pesadas.

Claro que a classe saudita mais abastada, a que faz férias nas Bahamas e noutras exóticas paragens, esquece todo este protocolo quando se junta à realeza europeia ou aos milionários norte-americanos. Que diriam os seus amigos da alta sociedade se lhes aparecessem com as respectivas caras-metades envoltas em negro?

Fora do mundo árabe, as mulheres dos ricos desforram-se vestindo cobiçadas peças confeccionados por estilistas de renome. Apenas a cabeça permanece coberta. «Nos voos provenientes da Europa e da América é uma correria para casa de banho assim que o avião se aproxima de algum destino árabe», dizia uma hospedeira de bordo europeia ao serviço da Emirates. «São as esposas dos homens de negócio árabes que se apressam a trocar os vestidos e saias ocidentais pelos tradicionais tchador e purdha».

A questão de mostrar ou não o rosto é frequentemente geradora de polémica. Em eleições municipais na Jordânia os fundamentalistas protestaram devido às directivas impostas pelo presidente da Câmara Municipal da capital, Amã, obrigando todas as mulheres recenseadas a identificar-se – mostrando o rosto – perante o presidente da mesa no momento da votação, para assim evitar eventuais fraudes eleitorais. Os islamitas mais ferrenhos, na pessoa política da influente Frente da Acção Islâmica, viram nisso um «ataque aos direitos das mulheres» e alegaram «que nenhum homem pode negar o direito da mulher a esconder o seu rosto». Em tom moralizador, sugeriram «que Deus todo-poderoso haveria de castigar» o ousado autarca. Exigiram mesmo que este revogasse a sua decisão e encontrasse uma alternativa pois «qualquer bom muçulmano» rejeita a ideia de homens estranhos, «sob o pretexto das eleições», serem confrontados perante mulheres descobertas «pois estas não querem ser vistas por homens».

Dados oficiais revelavam que cinquenta por cento do mais de um milhão de jordanos recenseados que tinham votado nessas últimas eleições municipais eram mulheres. Compreendia-se perfeitamente a imposição do autarca de Amã, sobretudo tendo em conta que naquele país é comum homens disfarçados de mulheres – ou até uma mesma mulher, incógnita pela túnica negra – votarem por diversas ocasiões ou sob identidade falsa.

Joaquim Magalhães de Castro

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