Sabe o que é uma Caspiada?
No passado dia 31 de Outubro celebrou-se em Portugal a Solenidade de Todos os Santos, festividade do calendário católico em honra de todos os mártires e santos que muitos crentes veneram em todo o mundo. Embora a data seja assinalada durante o dia, é na noite de 30 para 31 que a solenidade assume maior simbolismo. A ida ao cemitério para prestar homenagem aos antepassados e o acender das velas nas campas é, por si só, um acontecimento social, que faz com que as famílias, os amigos e os vizinhos se juntem em torno do mesmo sentimento.
Aos menos conhecedores desta festividade basta pesquisarem na Wikipedia para ficarem a saber que a “Igreja Católica celebra a Festum Omnium Sanctorum (Festa de Todos-os-Santos) a 1 de Novembro, que é seguido pelo Dia dos Fiéis Defuntos a 2 de Novembro”. Isto apenas se aplica à Igreja Católica que é regida a partir do Vaticano, pois a “Igreja Ortodoxa celebra esta festividade no primeiro Domingo depois do Pentecostes, fechando a época litúrgica da Páscoa, tal como a Igreja Católica Oriental”. Por seu lado, “a Igreja Anglicana também celebra o Dia de Todos os Santos com o mesmo significado que nas Igrejas Católica e Ortodoxa”. Já “na Igreja Luterana o dia é celebrado principalmente para lembrar que todas as pessoas baptizadas são santas e também aquelas pessoas que faleceram no ano transacto, pelo que o significado da celebração também é quase idêntico ao de outras igrejas cristãs”.
Acontece que nos últimos anos esta celebração, tipicamente cristã, tem sido adulterada por uma outra que muitos pensam ter sido importada dos Estados Unidos: o Halloween!
O Halloween ficou conhecido por meio das impecáveis campanhas de “marketing” dos filmes de Hollywood, sendo de destacar a forma utilizada para passar a mensagens ao grande público. A par do Pai Natal vermelho da Coca-Cola, que é hoje um símbolo do Natal, a abóbora é o símbolo da festa pagã do Halloween.
Se o leitor investigar mais aprofundadamente sobre as raízes do Halloween, que se celebra na noite anterior à Solenidade de Todos os Santos, rapidamente descobre que tem origem celta e que afinal não é um festejo norte-americano. Na realidade, foram as mega-produções de Hollywood que fizeram com que todos os miúdos e graúdos se vestissem de bruxas e decorassem as suas casas com abóboras.
Também em Macau, como em Portugal, o Halloween passou a ser uma constante nesta época do ano em quase todas as escolas, sem que haja qualquer justificação para tal. Os alunos são bombardeados com adereços e símbolos que nada têm a ver com o simbolismo inicial desta festividade.
Segundo reza a história, o Halloween surgiu na Europa há mais de dois mil anos por iniciativa do povo celta. Diz a lenda que entre o dia 30 de Outubro e 2 de Novembro os mortos voltavam a povoar a terra, tornando-se fantasmas. As pessoas só saiam à rua mascaradas, para poderem passar despercebidas. Daí a explicação porque hoje se vendem artigos relacionados com tudo o que é assustador e fantasmagórico.
Depois da tradição ter chegado à América passou-se a acreditar, um pouco por todo o mundo, que na noite de 30 para 31 de Novembro as casas ficam assombradas, fantasmas ganham vida, bruxas pegam em vassouras e vampiros deixam os caixões, para se juntarem na noite mais assustadora do ano. Pelo menos é o que se vê em filmes e desenhos animados – basta ligar a televisão em qualquer canal.
Em Portugal o Halloween tem ganho adeptos de ano para ano. Antigamente celebrava-se o “Pão por Deus”. Agora os mais pequenos já perguntam “doçura ou travessura?” no “Dia das Bruxas”. A apropriação do Halloween em Portugal é outras das consequências da globalização e enquadra-se no que tem vindo a acontecer com outras festividades, como o Carnaval e o Natal. Apesar de nós, católicos, sabermos e sentirmos o seu verdadeiro significado, é difícil resistimos à força do “marketing”.
Contudo, há localidades que ainda tentam manter as tradições de raiz celta. Vilar de Perdizes, em Montalegre, comemora a noite dos fachos – os rapazes roubam palha e vão para o alto dos montes gritar, a fim de espantar os espíritos, as bruxas e os demónios. Em Bragança realiza-se a Festa da Cabra e do Canhoto, um evento com forte influência celta em que é acesa uma fogueira, em torno da qual as pessoas se reúnem. A aldeia de Cidões recria um ritual de Noite das Bruxas, inspirado em antigas festas. Mais para Sul, em Lisboa, no Jardim Botânico da Ajuda, é organizado um evento para conhecer o jardim à noite, sendo organizadas brincadeiras. Há concursos de abóboras e de máscaras, e os mais “corajosos” podem fazer o passeio do terror. Na cidade dos estudantes, Coimbra, é feito um peditório por grupos de crianças. Levam abóboras vazias com uma cara desenhada e dentro uma vela acesa. De porta e porta, cantam a música tradicional “Bolinhos e Bolinhós”, em troca de dinheiro, bolos ou doces. Nos Açores ainda se comem as Caspiadas. É tradição as crianças fazerem um peditório e em troca os adultos oferecerem-lhes bolos com o formato do topo de uma caveira – as Caspiadas –, um pouco à semelhança do antigo “Pão por Deus”. Este tinha lugar no dia 1 de Novembro. As crianças saíam à rua para pedir o “Pão por Deus” de porta em porta, recitando versos de uma canção. Em troca recebiam pão, broas, frutos secos e, mais recentemente, por influência americana, guloseimas.
As Caspiadas, tradição que remonta à Flandres, será porventura das tradições mais genuínas desta época do ano. Acredita-se que poderá ter origem num ritual tibetano, no qual o topo da caveira, considerada como a parte que contém o espírito, é utilizada como taça na execução de ritos tântricos, no culto dos mortos. Esta prática terá sido adoptada mais tarde por algumas tribos celtas, criando profundas raízes na Europa. As Caspiadas não parecem ter perdido o devido enquadramento, pois quem as cozinha diz que as melhores são as que ficam com uma racha, o que faz lembrar o topo de uma caveira. Para quem tiver curiosidade em provar, aqui tem a receita:
Oito quilos de farinha de milho amarela passada em peneira fina; dois quilos de farinha de trigo; duas dúzias de ovos; dois quilos de açúcar; dois litros de leite; quinhentas gramas de manteiga; pau de canela; erva doce; folhas de laranjeira azeda; erva de Nossa Senhora.
Fervem-se os ingredientes no leite e escalda-se a mistura das duas farinhas, à noite, ficando de um dia para o outro em repouso. Na manhã seguinte amassa-se a mistura com os ovos, açúcar e manteiga. Deixa-se levedar. Fazem-se bolinhos do tamanho de uma mão fechada, que vão ao forno. São mais apreciados os que ficam com a superfície rugosa. Na Bélgica diz-se que assim deixam ver as costuras dos ossos da caveira.
João Santos Gomes