TESTEMUNHO MISSIONÁRIO ENTRE OS POVOS DA AMAZÓNIA

TESTEMUNHO MISSIONÁRIO ENTRE OS POVOS DA AMAZÓNIA

A incrível história do Padre Mario Lanciotti

O professor Mario Polia, antropólogo, historiador das religiões e profundo conhecedor das culturas andinas, publicou recentemente uma valiosa colectânea de relatos orais reunidos pelo padre Mario Lanciotti, missionário xaveriano activo no Brasil, na década de 1960, e antigo missionário na China e no Japão. Brilha agora, portanto, nova luz sobre o testemunho missionário entre os povos da Amazónia.

A obra reúne mitos, contos, lendas e narrativas cosmogónicas, transmitidas oralmente há gerações pelos povos indígenas da Amazónia. Ouvia-os directamente dos fiéis das suas missões, o padre Lanciotti, durante longas noites nas aldeias, muitas vezes ao luar, ao som dos grilos e dos sapos nocturnos. Esta actividade não era, para ele, um passatempo: considerava-a indispensável para o seu labor missionário. Fazia sempre um esforço por tentar compreender as pessoas dos locais para onde era enviado e ajudava-as de acordo com as suas capacidades, tentando “amá-las e aceitá-las” como eram, “evitando o ruído e o paternalismo”, como deixou bem expresso num dos seus testemunhos.

Ao compilar as tradições orais, o padre Lanciotti sabia que certas crenças precisavam de ser ultrapassadas. Como o próprio dizia, “as velhas superstições permanecem nas camadas mais profundas da alma, como cartazes colados uns sobre os outros: quando se arranca o primeiro, o anterior reaparece”.

A grande sabedoria de Lanciotti foi compreender que para evangelizar é preciso, primeiro, entender o modo de pensar do outro. A sua compilação de testemunhos é um acto de respeito e de escuta.

“Passei longos períodos na região do Rio Xingu, na fronteira entre as terras ocupadas pelos brancos e as florestas onde ainda vivem as tribos indígenas”, observou o Padre Lanciotti num relato. “Passei muitas tardes com os índios ‘civilizados’. Sentávamo-nos na erva, ao luar, enquanto grilos, sapos e aves nocturnas nos acompanhavam. Após a catequese, incentivava os meus interlocutores indígenas a contarem-me histórias da selva e acontecimentos mitológicos transmitidos ao longo dos séculos”.

O padre Mario Lanciotti (1901-1983) era natural de Cupra Marittima (Ascoli Piceno, em Itália). Vindo do Seminário de Fano, onde concluíra o Terceiro Curso de Teologia, chegou a Parma a 15 de Julho de 1925. Ordenado sacerdote dois anos depois pelo bispo D. Conforti na catedral de Parma, partira para a China em 1928, onde permaneceu até Dezembro de 1946, tendo passado pelas provações da residência forçada e da detenção.

Na China era conhecido como o “padre da bicicleta”, pois era este o meio de transporte que utilizava para percorrer todos os cantos do território a si confiado. De Pei-chan, em 1937, escreveu: “Há três anos, não havia aqui um único baptizado. Quanto sofri! Mas agora é Natal. Obrigado, Senhor, por me chamares para o meio desta gente!”. A sua pequena igreja, numa gruta escavada na montanha, estava repleta de cristãos.

Regressado a Itália, após um breve período de descanso, foi destacado em 1947 para Parma e depois para Piacenza, como director espiritual de teólogos. Em 1950 dedicou-se à acção missionária em vários Seminários. Um ano depois partiu para o Japão: permaneceu em Kishiwada e Nobeoka até 1955, altura em que foi destacado para o Brasil. Trabalhou no sul brasileiro até 1960 e, com a abertura da Prelazia do Abaeté do Tocantins, seguiu para o Pará, no Norte. Serviu em Tomé-Açu, Abaetetuba, Belém e, finalmente, em 1975, pediu para ajudar a Prelazia de Xingu, que carecia de pessoal.

Já septuagenário, o padre Lanciotti foi com os primeiros xaverianos para as regiões remotas da Prelazia do Xingu. Em 1976, a partir de Altamira, escreveu: “Já sou velho. Vivi a minha vida. Mas garanto que estou feliz, muito feliz com a minha vida missionária. Se o Senhor me desse a hipótese de recomeçar, não hesitaria em recomeçar da mesma forma, com alguns ajustes”.

A sua vida reflecte-se nos seus escritos. Escreveu extensivamente – não livros, mas muitos artigos e histórias sobre a vida missionária. Possuía um apurado sentido de observação e era capaz de captar acontecimentos significativos, observar costumes característicos e até julgar as situações mais diversas com que se deparava. O estilo era simples e agradável. Mesmo com a caneta, queria dizer “algo útil a todos”. E nos escritos deixou a sua mensagem: “Estou aqui”, escrevia ele a um amigo, “no meio da floresta amazónica, nas margens do rio Xingu. Estou feliz. Quando consegui um emprego neste lugar abandonado tinha 71 anos, mas agora sinto que perdi quarenta. Aqui sinto-me mais em casa como missionário. O Senhor foi demasiado bom para mim na minha velhice! Como tenho pena daqueles que consideram a vida missionária ultrapassada! Se queres ser feliz, vem comigo!”.

Nos últimos anos, afectaram-no graves problemas oculares. Pediu então para ir viver entre os idosos num lar em Belém, tornando-se “pobre entre os pobres”. Hospitalizado para uma cirurgia, não conseguiu recuperar devido a complicações pós-operatórias, tendo falecido a 22 de Janeiro de 1983. O funeral contou com a presença de quatro bispos, muitos sacerdotes e fiéis que muito o estimavam.

O padre Mario Lanciotti, Missionário do Senhor durante quase cinquenta anos, repousa agora nas margens do Rio Amazonas. A sua vida foi inteiramente dedicada à missão, incansavelmente e sempre nos lugares mais difíceis e desfavorecidos.

Joaquim Magalhães de Castro

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