Sacrifício, fé e penitência

Fátima… Porquê?

Há um ano falámos de Fátima, do 13 de Maio, do fenómeno global de fé e espiritualidade, de adesão popular, de sentimento religioso em torno do santuário. Mas, afinal, o que faz correr tanta gente, alimentar tantas devoções, nestes quase cem anos de Fátima? Porque é que Fátima continua a crescer em termos de dimensão agregadora de devoções e entrega espiritual? Quase cem anos depois, porque se fala assim de Fátima?

Há que o afirmar: foram os “inimigos” de Fátima quem mais promoveu este fenómeno religioso, quem mais o ajudou a divulgar. Sim, a imprensa republicana, principalmente, foi quem mais fomentou Fátima: na polémica, no ataque, na crítica verrinosa, na “denúncia”, no espectro anti-religioso – mais que anti-clerical diga-se! – que marcou a 1ª República em Portugal (nascida em 1910). A procura da secularização da Nação, no clima de perseguição ou intolerância face à Igreja Católica, são pois os ingredientes do caldo de forças motrizes que, ironicamente, acabaram por potenciar e afervorar ainda mais Fátima. E tudo o que representa. O racionalismo, até o ateísmo de Estado, contra a crença e a religiosidade popular, tinham em Fátima o cenário das suas antíteses. 99 anos depois, o leitor poderá aferir quem, afinal, não apenas “sobreviveu”, como, mais ainda, mantém o fenómeno de Fátima viçoso e… com futuro!

Os estudiosos, de todos os quadrantes, são hoje unânimes quanto a este influxo de energia e de tónica que Fátima recebeu logo desde os seus alvores, precisamente daqueles que a queriam enxertar, ou destruir. A imprensa republicana era o eco dessas forças, mas o fim, lembrando o adágio popular português, “o feitiço virou-se contra o feiticeiro”! Ou seja, atacar o fenómeno só resultou em ajudar a conhecê-lo, a difundi-lo, a uma “propaganda” ao contrário. Recorde-se aqui O Mundo, jornal do Partido Democrático, do ministro republicano ferozmente anti-clerical (pode-se mesmo ler, anti-religioso) Afonso Costa, talvez o mais famoso político – e o mais assumido – adversário da Igreja e do fenómeno religioso. Aquele periódico republicano chamou, por exemplo, de “Impostores” e “charlatães” à Igreja e a todos que se congregavam em torno de Fátima, em Agosto de 1917, antes da quarta aparição. Lúcia e os primos, Francisco e Jacinta, desde Maio de 1917 que voltavam àquele fim de mundo da charneca de Fátima para ver e ouvir a “Linda Senhora”, nos dias 13. Aquele jornal, como outros, mandava o povo “abrir os olhos e correr a chicote os charlatães…”, constituindo-se mesmo como o baluarte de combate a Fátima. As acusações ao clero eram ali vertidas em copiosa verborreia, ácida e fruste, irritada até, acabando mais por dividir a opinião pública e depois favorecer a difusão de Fátima do que a combater ou até denegrir, como pretendiam.

 

O lado católico

Os católicos portugueses, contudo, pautaram-se naqueles tempos por prudência, contenção e espera pela intervenção da hierarquia da Igreja. O processo canónico, por exemplo, só começaria em 1922, promovido pelo bispo de Leiria, que o concluiria em 1929. Há até prudência e contenção em demasia, deixando a espontaneidade assumir-se como a marca que caracterizava o fenómeno dentro da Igreja. Mas há cépticos também, há polémicas e debates destes com os mais fervorosos entusiastas. Mais tarde surgirá ainda a ligação de certos meios católicos à luta política, contra a República, o que retirou alguma força e espontaneidade ao fenómeno, pois alguns dele fizeram até bandeira de política anti-republicana. Todavia, nisto tudo, os jornais republicanos continuaram a “ajudar”, já na década de 20, a manter vivo o debate, que por si mesmo acabava sempre a promover Fátima.

 

Portugal na Cova da Iria

As peregrinações começaram logo cedo, a partir do Milagre do Sol, em Outubro, que atraiu entre 50 a 70 mil pessoas. Mesmo antes, em Setembro, a demanda de peregrinos era já enorme. A devoção era porém o mais importante, não tanto a mensagem recebida pelos videntes ou mesmo os acontecimentos em si. Só com a abertura do processo canónico se cimentaram a mensagem e as aparições, já nos anos 20. A 1ª Guerra Mundial já passara (1914-18) e os soldados regressaram, um contexto que ajudou a acrisolar Fátima, como lugar de paz e redenção.

A população portuguesa, com Fátima, demonstra a sua persistência na crença, contra o racionalismo e a secularização. Aquelas três crianças, os videntes de Fátima, sobrepuseram-se assim aos tribunos políticos e aos lentes das universidades, com o povo a “pegar no andor” de Fátima de forma indómita e apaixonada e a não mais o arrear. A sensibilidade popular perante o fenómeno religioso e o sentimento que daí deriva, em crescendo, são uma marca de Fátima, de vivência popular da fé, mesmo até de reacção (que não era o fim último do povo, claro) contra o racionalismo anti-religioso da política. Até depois da polémica em torno de Fátima entre 1922 e 1924, que começou no atentado, em Março de 1922, contra a primitiva capelinha das aparições, construída pelo povo. O Governo proibiu depois as peregrinações, com a imprensa católica a reagir e a apelar à desobediência civil. Mas do lado republicano apareceram também críticas às acções do Governo contra Fátima, onde os peregrinos eram proibidos de ir, ao contrário do que acontecia noutros lugares marianos, onde eram permitidos. O fenómeno a abater era somente e apenas Fátima. O que ajudou a dimensioná-lo ainda mais e mais, em fé e fervor…

Conflito de mentalidades ou luta política, Fátima é mais do que isso. O Milagre do Sol de Outubro de 1917 é talvez o momento mais forte deste ciclo de Fátima em 1917. Num dia em que chovia que nunca mais acabava, milhares de crentes dizem ter testemunhado um fenómeno “maravilhoso”. “Os pastorinhos mandaram fechar os milhares de guarda-chuvas e, coisa estranha, segundo testemunho de milhares e milhares de pessoas, o Sol apareceu com uma cor de prata fosca, numa agitação circular, como se fosse tocado pela electricidade, segundo pessoas ilustradas que presenciaram o facto”, como referiu o Diário de Notícias na época. Rememora o mesmo diário que milhares de pessoas “com toda a devoção e crença, entoando cânticos e rezando o terço”, já rumavam ao local desde a véspera do 13 de Outubro. Cerca de 80 mil pessoas “sugestionadas, e quem sabe mesmo ofuscadas pela própria luz do Sol que durante o dia aparecia pela primeira vez, caíram por terra, chorando e levantando para o alto as mãos que instintivamente juntavam. Nos seus rostos notava-se um embevecimento estático que denotava um absoluto alheamento da vida” (DN, 15 Outubro 1917). Fátima é pois oração, penitência, sacrifício, conversão, mas acima de tudo fé. Fátima, 99 anos depois…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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