Navio-escola Sagres na “Armada de Rouen”.
É o que se designa de sentido de oportunidade. Uma pequena cidade, a 120 quilómetros do mar, consegue, graças a um rio, atrair a si o mais importante evento marítimo da França, a Armada de Rouen. É do Sena que estamos a falar, é certo, mas, pese a sua notoriedade, não passa de uma simples via fluvial. Por sinal, bastante frequentada, e durante todo o ano. Lisboa, com um Tejo espraiado à sua disposição, bem podia aprender com exemplos destes.
Com uma periodicidade de cinco anos, a Armada de Rouen completou já um quarto de século, tendo a sexta edição (em 2013) sido a derradeira a cargo de Patrick Herr, o responsável pela iniciativa desde a primeira hora, desenhando-se agora no horizonte a ameaça de um possível fim do evento. Há até quem fale em passagem de testemunho para as longínquas e áridas terras do Dubai, hipótese que a muitos, compreensivelmente, parece descabida de todo.
Sob a designação “As velas da liberdade”, a primeira edição da Armada teve lugar em 1989, assinalando-se então o bicentenário da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O tema liberdade seria ainda o mote para a segunda edição, em 1994, que, cinco ano depois, com o virar do século, passaria a ser designada “Armada do Século”, e, em edições subsequentes, “Armada de Rouen”, muito simplesmente. Recorde-se, a título de curiosidade, que o navio-escola luso marcou presença em quatro das edições anteriores desta importante iniciativa.
UM EVENTO COM PESO E MEDIDA
Durante semana e meia estiveram atracados ao longo do Sena, nos vários quilómetros de cais de Rouen, 38 grandes veleiros e oito navios de guerra de diferentes nacionalidades, havendo a salientar a presença massiva de veleiros holandeses (todos alugáveis e auto-sustentados), e, claro, navios com bandeira francesa. Também os russos se impuseram, com um Kruzenshtern, o segundo maior veleiro do mundo, e um Shtandart, réplica de uma fragata dos czares setecentista, e o bem conhecido Mir. Tão pouco faltaram à chamada navios ingleses, polacos, suecos e o veleiro escola do sultanato de Omã, o luxuoso e elegante Sahbab Oman. Um facto curioso: independentemente da bandeira desfraldada, alguns dos navios presentes eram de construção alemã, pré-Segunda Grande Guerra, à semelhança da Sagres, que teve na Armada 2013 um dos pontos altos da sua viagem anual de instrução, com a duração de um mês e a presença a bordo de 38 cadetes do segundo ano da Escola Naval e 15 cadetes e jovens oficiais estrangeiros, de Angola, Argélia, Argentina, Brasil, Canadá, China, Espanha, França, Holanda, Marrocos, Moçambique, Polónia, Reino Unido e Turquia, número a acrescentar a uma guarnição permanente de 128 militares.
O navio chegou a Rouen na tarde de 9 de Junho, após um par de dias bastante atribulados no Canal da Inglaterra, registando-se, desde então, uma temperatura verdadeiramente invernal.
UM PROGRAMA RECHEADO E FARTO
O navio-escola português encontrava-se bastante bem situado, a poucos metros do recinto dos concertos, na margem direita do Sena, e em frente ao local de lançamento do fogo de artifício que diariamente, pelas 23 horas e 30, logo após os espectáculos, era exibido no negro firmamento, sempre com temática diferente. A Sagres passava então a ser, nessa altura, a plateia de eleição de todo o festival.
Ao longo do dia, entre as pontes Guillaume Le Conquerant e Flaubert, um verdadeiro mar de gente, que, de forma ordeira, se passeava ao longo dos cais, tirando fotografias e aguardando pacientemente a sua vez nas longas filas para visitar os navios, ou então para adquirir recordações nas dezenas de barracas e tendas, recheadas de produtos alusivos ao mar – ou não – e para degustar as bebidas, petiscos e pratos à disposição nos abundantes restaurantes e bares montados para o efeito, sendo que muitos deles funcionavam no interior de alguns dos navios que desse modo cobriam os custos da sua participação no evento.
Falou-se numa previsão de um total de cinco milhões de visitantes, um número que não deixa de ser bastante impressionante.
De salientar a presença na Armada 2013 de inúmeras crianças, idosos e até deficientes motores, esses, infelizmente, impedidos de subir a bordo dos navios, por motivos óbvios. Honrosa excepção feita ao navio inglês Tenacious, equipado para os poder receber.
Pelo palco expressamente montado para os Concerts de la Region (assim se chamavam os espectáculos musicais) passaram nomes sonantes como o libanês Mika, os parisienses BB Brunes, os “dinossáuricos” Madness e a bela bretã Nolween Leroy, sem esquecer o casal de músicos cegos malianos, Amadou e Mariam, que a Rouen trouxeram o mais significativo e mágico momento musical.
CIDADE DOS NORMANDOS E DE JOANA DE ARC
Rouen reivindica para si o epíteto “capital da luz”, e recorre a metáforas pouco comuns, como “a pedra cor de manteiga fresca”, quando se refere à Notre Dame local, que por esses dias tinha espectáculos diários de som e luz, que transfiguravam por completo a sua fachada. Considerado o mais importante património arquitectónico da cidade, a catedral foi, ao longo da história, por diversas vezes arrasada, primeiro pelos vikings e, mais recentemente, pelos bombardeamentos dos aliados durante a Segunda Grande Guerra.
Do porto de Rouen, capital da Normandia, partiu para as Américas, nos primórdios do século XVI, o pouco conhecido navegador Jean de Verrazzane; e, numa das suas praças, seria supliciada a celebérrima Joana de Arc, facto assinalado na Armada 2013 com a inauguração de um monumento a ela dedicado, e que contaria com a presença de alguns dos oficiais portugueses.
UM LONGO PASSEIO NO SENA
Ao amanhecer do dia 16 já a ponte levadiça Flaubert – tecnologia de ponta cuidadosamente guardada pela polícia – estava levantada. Havia que acautelar o início do tão aguardado desfile náutico no Sena, que fecharia o evento com chave de ouro. Um percurso de 120 quilómetros, cronometrado ao minuto, pelas diversas comunas ribeirinhas da Alta e Baixa Normandia. O primeiro navio saiu de Rouen às sete da manhã e, segundo o previsto, chegaria ao estuário de Le Havre às 4 horas e 30 da tarde, sendo que o último dos participantes atingiria essa posição quatro horas depois. Enfim, espectáculo garantido para uma tarde de Domingo passada com a família. E foi isso que aconteceu.
De um lado e do outro do Sena, eram aos milhares as pessoas sentadas em cadeiras, nos relvados e varandas de suas casas, a acenarem, a agitarem bandeirolas e a apitarem cornetas, vuvuzelas e sirenes. Havia quem aproveitasse a ocasião para o churrasco de ocasião e não faltaram orquestras com tubas, trompetes, tambores, caixas de rufar e respectivos olés!, e as bandeiras portuguesas, que regularmente apareciam quando e onde menos se esperava. Assinalavam, por exemplo, o centro de povoações que surgiam a bombordo e a estibordo, com a multidão a aplaudir e aos gritos, chamando a atenção da guarnição que ia correspondendo com acenos de mão, bonés no ar. É da tradição.
A Sagres optou por fazer soar a sua sirene à aproximação de qualquer aglomerado considerável, sobretudo se ali se vislumbrassem bandeiras verde-rubras. E o toque de sirene foi, naturalmente, bastante mais prolongado e mais potente quando a barca passou junto a La Mailleraye-Sur-Seine, a cidade madrinha do veleiro português, que dias antes recebera com pompa e circunstância uma delegação da Sagres que para o efeito ali se dirigira.
Uma palavra de apreço para os oficiais de ligação da Marinha Nacional Francesa, a antilhesa Magali e o luso-francês Dominique Gonçalves, sempre prestáveis, simpáticos e muito profissionais.
Em 2018 há mais. Ou melhor dizendo, talvez haja mais, pois os opositores da iniciativa argumentam que não estão para arcar com os impostos suplementares que a organização da Armada acarreta… E foi com essa incerteza no futuro que os belos e grandes veleiros desfilaram em direcção ao grande oceano, com as agulhas apontadas a norte, rumo ao porto holandês de Den Helder, onde os aguardava nova concentração festiva.
Joaquim Magalhães de Castro