Os livros e o seu destino
Numa altura em que decorre mais uma edição do festival literário Rota das Letras tempo para recolocar a velha questão: lê-se muito ou pouco em Macau? Qual o número de editores existentes no território e como se relacionam entre si, se é que existe algum tipo de relacionamento? Julgamos que é uma pergunta à qual ninguém, com precisão, poderá neste momento dar resposta. É preciso saber, após quantificar o número aproximado de leitores, o que é que as pessoas lêem e quais as suas apetências. Esse estudo continua por fazer, assim como tantas outras coisas no que concerne o universo editorial. «Em língua chinesa, julgo que nem os próprios chineses saberão responder com segurança. Quanto ao Português, o que se pode dizer é que hoje os livros têm menos saída do que tinham até 1999», comenta uma pessoa ligada ao sector editorial local que prefere manter o anonimato. Chamemos-lhe senhor Y.
Há em Macau fenómenos que por vezes são interpretados de forma incorrecta, como, por exemplo, as bibliotecas estarem cheias. «Estão cheias – e tal contribui para as estatísticas – mas é de jovens que vão para ali estudar pois não têm condições para o fazer em casa», diz o nosso interlocutor. Outro exemplo que pode induzir em erro são casos como o da biblioteca chinesa em frente do Centro Diocesano de Comunicação Social, onde a única coisa que se lê são jornais. Tão pouco se vislumbra ali alguma publicação nas estantes que não seja chinesa. Acontecem, de quando em vez, umas Feiras do Livro com lemas do tipo “a leitura é um mundo maravilhoso”, na tradição daquele tipo de frases oficiais que parecem dirigidas a bonecos. Na verdade, para além das tentativas, intencionais ou não, de infantilização de adultos (bem patente nas campanhas de civismo promovidas pelas autoridades), uma enorme cultura burocrática – legado da Administração Portuguesa, convém salientar – tolhe os movimentos de quem se quer mexer e crescer. «A iniciativa privada, sobretudo no plano cultural, dificilmente tem espaço, não consegue medrar», queixa-se o senhor Y. Tão pouco há um verdadeiro mecenato na área editorial por parte das empresas locais, pois no entender destas, as editoras ou autores prosseguem fins lucrativos.
Vejamos o que tem a dizer sobre isto o senhor Y: «Se uma editora não pode beneficiar do mecenato porque prossegue fins lucrativos não há nada a fazer. Esta cultura burocrática faz que, por exemplo, se realizassem semanas do livro e das bibliotecas sem que tenha havido qualquer contacto com os agentes culturais ligados ao livro. Independentemente das iniciativas que as instituições oficiais possam tomar, toda a cultura, toda a actividade e dinâmica cultural do livro, funciona, em Portugal, na Europa, na América, à volta das editoras. O motor das iniciativas são as editoras. Ora bem, o que é que acontece em Macau? Há uma semana do livro e das bibliotecas, e nós não somos ouvidos nem achados. Há uma cultura administrativa que faz com que sejamos obrigados a fazer o depósito legal e a entregar xis livros à biblioteca, mas depois, quando acontecem as iniciativas, a biblioteca ou as instituições não têm conhecimento da existência das editoras. Pior: não percebem qual é a função delas. E isso complica tudo».
A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA
Segundo a legislação portuguesa, que influenciou a legislação de Macau, qualquer pessoa pode ser um editor. «Se eu edito um livro a título pessoal, a edição é minha, eu sou o editor do meu livro. Mas isso não faz uma editora. Uma editora, para além de escolher os temas e as matérias e criar colecções para as suas edições, para além de fazer com que os livros saiam cuidados, bem apresentados, em bom Português, se for caso disso, devem depois fazer uma coisa muito mais importante e muito mais difícil – e tem sido esse o calcanhar de Aquiles – que é fazer a distribuição e a promoção do livro e do autor», esclarece o senhor Y. E acrescenta: «Porque se fizer um livro, com subsídio governamental ou seja do que for, para depois deixá-lo no armazém, esse livro não cumpre a sua missão. O livro só cumpre a sua missão quando chega ao leitor, e pela via normal, que é a do leitor adquirir o livro porque teve o gosto e porque lhe chegou a informação que esse livro existe. Isso é que é uma editora. A editora só cumpre a sua função no momento em que o seu autor é conhecido, promovido, traduzido, etc. Isso tudo passa pelo marketing, por acções de divulgação que obviamente uma instituição pública não pode fazer».
O problema é que nos meios pequenos, como Macau, «há uma grande necessidade de protagonismo. As instituições querem mostrar coisas, querem mostrar serviço, e não se apercebem que podem mostrar serviço de outra maneira».
REALIDADE “FAHRENHEIT 451”
Sabe-se que pilhas e pilhas de livros continuam armazenados, sem destino aparente, algures na cidade. Consta até que durante o processo de transição milhares deles foram parar à incineradora de Coloane… É uma imagem que nos traz de imediato à memória a famosa obra “Fahrenheit 451”, do escritor Ray Bradbury. «Se isso é verdade, não só constitui uma ilegalidade mas sobretudo uma manifestação anti-cultural primária», comenta o senhor Y. Infelizmente também é prática comum de algumas instituições que apoiam edições de livros e que pedem exemplares em troca, deixarem esses mesmos exemplares em armazéns a apodrecer. «Não sei que destino possam ter. Sempre que propomos a alguma instituição o apoio através da compra de exemplares, portanto um apoio que no fundo é uma troca de serviços, sugerimos que esses livros sejam enviados às bibliotecas. E nós próprios tomamos a iniciativa. Os livros têm sempre que ter destino», afirma o senhor Y.
Há dois grandes mercados para o livro feito em Macau. O de Portugal e o mercado global, sendo que neste último ter-se-ia de apostar no Inglês. «Mas para isso», como lembra o senhor Y, «é preciso levar editoras estrangeiras a interessar-se por um projecto desta natureza, não somos nós próprios que conseguiremos isso alguma vez». Quanto às edições em Português, «hoje é bastante mais difícil conquistar o mercado, até 1999 teria sido mais fácil. Mas basicamente passa por afectar uma verba para promoção, que depois as formas de promoção nós sabemos quais hão-de ser. Isso não tem qualquer espécie de problema».
Há necessidade de uma maior participação de Macau nas feiras do livro (como já vai, finalmente, acontecendo) em Portugal e noutras feiras internacionais. «Pelo menos em Portugal, para ser feita de uma forma legal e clara, é conveniente que essa participação seja feita por editoras privadas, pois quem organiza a Feira do Livro é a APEL – Associação de Editores e Livreiros, e nessas feiras só podem participar editores. E o conceito de editor dos sócios da APEL é o de editor que prossiga fins comerciais, de empresa portanto. Não há lugar, ou não deveria haver lugar para instituições oficiais. Mas isso faz tudo parte de um plano de promoção do livro e da leitura que devia ser levado por diante quanto antes».
O senhor Y considera que compete ao Governo a tarefa de promover os livros dos autores locais, «aproveitando a realidade Macau, servindo-se da realidade Macau, para divulgar obras chinesas em Português, tanto em Portugal como nos restantes países lusófonos, e obras de língua portuguesa em Chinês, em Macau e também na China continental».
Joaquim Magalhães de Castro