Passeios por Havana – 8

Comandante Abrantes e a Punta del Macao

Em Havana as estátuas e as placas de rua parecem ter vida própria. E também nesta cidade, como acontecera anos antes no Rio de Janeiro, deparo com veios de escorreita filosofia de parede. Na carioca urbe era um tal de Profeta Gentileza a cobrir os cinzentos e frios pilares do viaduto junto ao Terminal Rodoviário Novo Rio com quadras suas; aqui, na capital cubana, são, de autor incógnito, umas quantas máximas assertivas num nicho de parede. Letras ligadas umas às outras; a diferenciá-las cores apenas; o seguinte está inscrito: “O bom pai ensina o seu filho a trabalhar e a ter vergonha para que tenha honradez e educação porque assim para ele a porta do bem está aberta. O mau pai ensina o seu filho a ser uma pessoa vulgar sem escrúpulos e por isso espera-o aberta a porta do castigo ou a cadeia ou o cemitério”.

Um pouco mais adiante, nova evocação histórica. Prende-me esta dupla atenção pois versa uma outra personagem pública cubana com óbvia ascendência portuguesa. Falamos de um certo rebelde comandante cujo apelido, Abrantes, não deixa dúvidas quanto à procedência. Reza assim a dita lousa: “Aqui nesta casa nasceu a 9 de Julho de 1935 Juan Abrantes Fernández (Cocó), comandante do exército rebelde e um dos fundadores do Directorio Revolucionario. Incorporou-se, em Março de 1958, à guerrilha que contra o ditador Fulgencio Batista se organizou no Escalado. Manteve-se às ordens de Ernesto Guevara desde que este passou a comandar as operações. Morreu a 23 de Setembro de 1959, quando a avioneta que o transportava de Varadero a Las Villas se despenhou numa colina. Honram a sua memória companheiros e amigos”.

Ao entrar no Hotel Raquel – local de encontro de toda uma vaga de judeus vinda do leste da Europa e da Turquia (esta, na sequência da dissolução do Império Otomano), e que a Havana chegaram em catadupa nos primórdios do século XX – vejo o Brasil marcar o tento flamengo. “Golazo!”, exclama um dos dois barbudos com ar “soixante-huitarde” que aqui estão. Grita, e logo se levanta visivelmente agastado. Não tem ar de ser cubano; talvez seja chileno. Argentino é pouco provável, pois parece-me difícil que um argentino torça pelo escrete canarinho, que neste jogo contra a Bélgica irá, contra todas as previsões, perder. Prossigo a caminhada e deparo com uma longa fila de pretendentes a disfrutar o jogo no enorme plasma instalado no interior do Café del Oriente. Na esplanada, alheio à bola, um grupo de “son cubano” apresenta-se a preceito. E lá o vejo, ao patriarca da família da mãe do Mykel, sacudindo as maracas em grande euforia, notória carta fora de baralho naquele naipe de músicos profissionais. Dissera-me ele que tocava para os turistas no centro de Havana, dando assim a entender que era músico de profissão. Afinal, não passa de um simpático emplastro que os músicos de verdade, certamente por amizade, toleram.

Uma vez arrumadas – na fase anterior da competição desenrolada na anfitriã Rússia – as demais selecções sul-americanas, cabia ao Brasil manter acesa a única esperança de todo um continente; daí a presença dos estandartes com o globo da Ordem e do Progresso arvorados em alguns dos lares cubanos. «Agora, definitivamente já não há mais latino-americanos no torneio», conclui, desiludido, o cubano a quem pergunto pelo resultado final do jogo dessa tarde. «Para os quartos de final restam equipas europeias». Europeias e apenas do Norte da Europa. É excepção a Croácia, que não é do Norte mas parece. Todos assistimos neste Verão a um mundial atípico em todos os sentidos. No final da partida ainda me cruzo com dois belgas. Estão equipados a rigor, mas nada de efusividades. Certamente se aperceberam já que as simpatias daqui não lhe são de todo favoráveis. Por isso, o melhor mesmo é manter a discrição.

Músicos de rua há-os aos centos em Havana, de vários escalões etários e, regra geral, de superior qualidade. É um primor a orquestra juvenil alinhada no claustro principal da Plaza de Armas, onde estão sedeadas a biblioteca e os arquivos da Oficina do Historiador. De modo imaculado interpreta vários trechos de música clássica, de Gershwin a Dvorak, passando por peças de compositores cubanos sem projecção internacional mas que pedem meças a qualquer dessas estrelas que os “mass media”, e apenas eles, catapultam para a posteridade. Tenho à minha frente um excelente quadro da diversidade étnica presente em Cuba.

Ao consultar pela enésima vez o mapa da cidade, descubro – algures entre as conhecidas praias de Santa María del Mar, Boca Ciega e Baños del Mar – a Punta del Macao, a norte de Guanabo. Bem, semelhante designação só pode evocar o infame tráfico de cules. Talvez fosse esse até o local exacto onde eles eram desembarcados. Na vizinha República Dominicana existe uma Playa del Macao (bem bonita, por sinal), certamente também ligada a esse tráfico. Ao longo de meados do século XIX verteria do Império do Meio para o resto do planeta uma verdadeira torrente migratória. Eram os novos escravos angariados nas aldeias chinesas por desonestos compradores. Aos ingénuos e necessitados camponeses eram prometidos mundos e fundos que os levavam a aventurar-se até à zona costeira. Até Macau, Cantão e demais portos meridionais do Mar da China. Aí permaneciam embarcados, ao largo, inebriados pelo jogo, o ópio e a luxúria, endividando-se até ao tutano, ficando assim na total dependência de contratadores sem escrúpulos. Muita dessa gente vinha ao engano, pois era-lhes prometido trabalho nas proximidades de Macau; mentiras que não raras vezes originavam motins, sempre violentamente reprimidos. Foram muitos os cules arremessados, depois de mortos, borda fora. Aos que conseguiam escapulir-se não os autorizavam os poderosos mandarins o regresso à terra natal. Restava-lhes, como alternativa, a pirataria e outras actividade ilegais. É justo evocar aqui o papel do ministro português João de Andrade Corvo (1824-1890), denunciador das irregularidades de todo o processo de angariação. Para tal redigiu um relatório, em finais da década de 1870, onde era feito um ponto da situação. Por seu intermédio (Corvo detinha a pasta dos Negócios Estrangeiros) Portugal colocaria em vigor em Macau, dez anos depois, um novo regulamento de contratos de cules. Doravante, estes seriam supervisionados por uma autoridade governamental. Não foi nada fácil esta caminhada de Andrade Corvo – a quem muito devem os imigrantes chineses – pois se opunha a poderosas forças e poderosos interesses instalados.

Do porto de Macau, a bordo de vapores das mais insuspeitas bandeiras, partiriam, pois, inúmeros chineses. Rumo às Américas, mas também às plantações de borracha e às minas de estanho da Malásia e do Bornéu. Iam ainda para os campos de tabaco e de ópio nas Índias Orientais Holandesas e para as hortas e portos da Indochina. Houve quem procurasse o ouro na Austrália e quem cultivasse ananases no Havai. Na América do Norte plantaram o algodão nas planícies do Sul, finda a Guerra da Secessão, substituindo os negros alforriados; e, como bem documenta Hollywood, no vasto Oeste, instalaram os carris do caminho-de-ferro. Mas houve quem para sul rumasse – para extrair o guano nas altas montanhas bolivianas e no Peru – e os que a meio caminho ficaram. Em Cuba na cana-de-açúcar se especializaram; houve-os também operários fabris, carregadores, condutores de riquexó, lojistas e empregados domésticos. Eram os cules chineses a que se referia Eça de Queiroz. Muitos deles – em Cuba e nos restantes locais mencionados – enriqueceram de tal forma que bem cedo se transformariam na nova classe dirigente das terras de acolhimento; tal é ainda hoje bem visível. A maioria, porém, se antes tinha fugido à miséria e às inundações que lhes destruíam as colheitas de arroz e às violentas convulsões políticas e sociais que lhes tiravam o sossego, agora, nos Caraíbas, nas mãos das tríades, vegetava na indigência e no mundo da droga e do crime, formando um novo exército de escravos.

Joaquim Magalhães de Castro

 

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