«Na China, os leprosos são os mais pobres entre os pobres».
Trabalha com mulheres em risco, educa os órfãos de vítimas da SIDA, cuida e dá consolo a pacientes com lepra e com VIH, e começa agora a olhar para aspectos como o ambiente e a sensibilização ambiental. Fundada há 32 anos pelo padre Luis Ruiz, a Casa Ricci Serviços Sociais presta apoio a mais de quatro mil pessoas na China continental. A missão que o jesuíta espanhol se propôs conduzir no final da década de 80 é hoje impulsionada pelo padre Fernando Azpiroz, que coordena uma equipa de 75 funcionários e voluntários espalhados por quase duas dezenas de centros e comunidades. Com despesas anuais superiores a um milhão de dólares, o dinheiro – reconhece o sacerdote argentino – é sempre um problema. A igreja do Seminário de São José acolhe hoje um concerto solidário, dinamizado com o propósito de angariar financiamento para a instituição de solidariedade da RAEM que melhor conhece a China.
O CLARIM– A Casa Ricci Serviços Sociais existe há mais de trinta anos, sempre com a China perto do coração. Que trabalho desenvolve no Continente?
PADRE FERNANDO AZPIROZ– A Casa Ricci está na China continental há mais de trinta anos e a acção que tem vindo a exercer pode ser vista à luz de três grandes momentos. Os primeiros dez anos foram marcados pela prestação de serviços directos. Num segundo momento, construímos comunidades para servir pacientes com lepra e com VIH/SIDA. Procuramos inseri-los em comunidades onde recebem a ajuda de religiosas, que vivem e tratam deles em permanência. Numa terceira fase, ao longo dos últimos dez anos, estas comunidades deram origem a redes mais vastas. Já não estamos a falar de comunidades isoladas, mas de uma rede de comunidades, interligadas entre si. Começámos ainda a trabalhar fora destas comunidades. Estendemos o trabalho que fazemos a hospitais e à sensibilização das pessoas em domínios como a saúde. Em Hunan e Sichuan estamos presentes em áreas onde o problema não está concentrado num grupo de pessoas. Há casos de famílias inteiras afectadas pela lepra ou pelo vírus do VIH. O problema não está concentrado e essa é uma das razões pelas quais começámos a trabalhar enquanto comunidades e não apenas como centros.
CL– Há uma certa tendência para se olhar para a lepra como uma doença do passado. Ainda é um problema na China?
P.F.A.– Depende da forma como olha para a questão. Se olha para a questão em termos absolutos ou em termos comparativos. Em termos comparativos não é um problema: a doença está sob controlo e o número de novos casos reportados anualmente é diminuto, ainda que todos os anos surjam novos casos. Como dizia, a lepra está sob controlo, mas não foi erradicada. Mesmo que os números não sejam significativos, quem sofre de lepra enfrenta sempre preconceito, mesmo os pacientes que foram curados. Muitos ficaram incapacitados, com mazelas significativas e não são poucos os que foram abandonados pela própria família. De acordo com as estatísticas, há cerca de trezentos mil chineses afectados pela lepra na China. O número de novos casos é diminuto, mas ainda existem. Muitas destas pessoas não têm família, outros já têm uma idade avançada e outros ficaram incapacitados. Todos eles estão sujeitos a discriminação. Há dezenas de centros na China com pessoas a viver nestas condições e para quem tem ou teve lepra a doença é um grande problema. Na minha perspectiva pessoal, estes são os mais pobres entre os pobres, os que estão em pior situação. Do ponto de vista da China a lepra já não é uma questão, mas o impacto que tem sobre os que contraíram a doença é devastador.
CL– Dizia que a Casa Ricci trabalha também com pacientes com o VIH/SIDA na província de Hunan…
P.F.A.– Hunan e não Henan. A província de Henan é muitas vezes associada à doença por causa de transfusões de sangue que foram feitas com sangue contaminado, mas nós trabalhamos em Hunan, onde o problema tem uma natureza local. Trata-se de uma região onde, a determinada altura, o consumo de droga conheceu um aumento significativo, tendo aumentado também o número de pessoas diagnosticadas com o VIH/SIDA. A comunidade de que estou a falar é uma comunidade pequena e as pessoas começaram a adoecer e a morrer. À época, as terapias anti-retrovirais ainda estavam pouco desenvolvidas. As pessoas começaram a morrer e a comunidade, pequena, deparou-se com um grande desafio, até porque o número dos que se encontravam nesta situação era significativo. Foi assim que começámos: a tratar de pessoas que estavam a morrer por causa do VIH/SIDA. Depois deles, começámos a receber as crianças que deixaram para trás.
CL– De uma forma geral, com quantas pessoas trabalha a Casa Ricci Serviços Sociais na República Popular da China?
P.F.A.– No total? Se tivermos em conta o trabalho que conduzimos nos hospitais, com mulheres em risco, o apoio directo que fazemos chegar aos leprosos e aos pacientes com SIDA e às crianças, diria que neste momento trabalhamos com cerca de quatro mil pessoas, mais coisa menos coisa. O número é muito superior se considerarmos as famílias e as pessoas que beneficiam indirectamente do trabalho que desenvolvemos.
CL– Estes cuidados são prestados sobretudo por religiosas que conduzem este trabalho a título voluntário…
P.F.A.– Uma parte significativa. Estamos a começar a combinar diferentes abordagens. O trabalho quotidiano feito nestas comunidades, que designamos de comunidades solidárias, é conduzido por cerca de sessenta voluntários, a maior parte dos quais são religiosas. Temos ainda quinze ou dezasseis funcionários que coordenam os diferentes esforços que estamos a desenvolver. Em alguns dos locais onde estamos presentes os funcionários começaram a substituir as religiosas, mas a exemplo do que sucedia com elas, vivem e trabalham inseridos numa comunidade. Estamos a tentar implementar este novo método. No total, eu diria que trabalham connosco entre setenta a 75 pessoas. Este número engloba funcionários, mas também as religiosas que colaboram connosco a título voluntário. A eles acrescem todos aqueles que nos fazem chegar o seu apoio, os nossos mecenas. Se eles forem tidos em conta, então o número dos que tornam possível o trabalho que desenvolvemos na China supera em muito as duas mil pessoas.
CL– Estamos a falar da resposta, sobretudo, a necessidades físicas. A Casa Ricci também procura responder às necessidades espirituais destas pessoas? Ou esse não é o foco do trabalho que desenvolve no Continente?
P.F.A.– Não é possível separar os dois aspectos, uma vez que somos um só. Quando alguém está a morrer sente necessidade de todo o tipo de cuidados e de garantias. Na maior parte dos centros onde trabalhamos, o trabalho que desenvolvemos é feito em parceria com o Governo. Não se trata apenas de nós próprios. Quando uma pessoa está a morrer, a nossa prioridade passa por tentar perceber se o conseguimos salvar, em termos físicos. Mas depois há uma série de necessidades sociais, psicológicas e espirituais a que temos que dar resposta. As pessoas necessitam de se reconciliar com elas próprias, até porque há uma certa sensação de culpa, de que fizeram algo de errado com a vida. Não é fácil separar estes aspectos. Nunca os separamos, da mesma forma que o padre Ruiz, o nosso fundador, nunca separou as necessidades materiais das necessidades culturais e espirituais das pessoas. Não somos evangelizadores no sentido tradicional do termo, de transmitirmos o Evangelho e a Palavra de Deus. Espalhamos o Evangelho através do serviço que oferecemos.
CL– Um dos objectivos do concerto que a Casa Ricci organiza, mais logo, no Seminário de São José, é de angariar financiamento para as actividades que promove na China. O dinheiro continua a ser um problema?
P.F.A.– O dinheiro é sempre um problema. Todos os dias. Nas actividades de que lhe falava, gastamos mais de 1,2 milhões de dólares todos os anos. Desenvolvemos o trabalho que desenvolvemos não por termos cinco ou seis grandes empresas que nos apoiam, mas por podermos contar com a ajuda de centenas de pessoas um pouco de todo o mundo. Alguns foram ajudados pelo padre Ruiz e agora querem pagar na mesma moeda a ajuda que receberam. São estes pequenos contributos que permitem que continuemos a servir. Um dos nossos objectivos é o de procurar convencer a população de Macau a envolver-se mais, porque mais do que um projecto internacional, este é um serviço que a comunidade de Macau pode prestar aos mais necessitados. Macau pode chamar a si um papel importante e as pessoas, através do nosso trabalho, podem contribuir para que a sociedade chinesa se torne mais humana, mais solidária e mais harmoniosa.
CL– A actividade da Casa Ricci está centrada na China continental, mas tudo começou em Macau. Que serviços ainda prestam no território?
P.F.A.– Em Macau ainda mantemos algumas actividades, algumas das quais vão ser renovadas. Dizia-lhe há pouco que uma das escolas fundadas pelo padre Ricci foi a escola Matteo Ricci, onde continuamos a ensinar as crianças filhas de migrantes que não recebem qualquer apoio do Governo. Mantivemos essa tradição. Por outro lado, uma das pessoas que colaboram connosco, o Peter Ao, está a trabalhar com o Governo com o propósito de ajudar a criar um sistema de acção social mais estandardizado.
Marco Carvalho