Oriente próximo Lusitano – 1

Muralhas, feições e aguardente de figo

No mundo antigo era o incenso, hoje é o petróleo. A riqueza do sultanato de Omã. As suas potencialidades turísticas são, por agora, pouco mais do que isso. Potencialidades. Orla costeira com areais infindos e água cristalina. Desertos sem fim, aldeias de traça original. E fortalezas. Quantas delas obra dos portugueses. Chega-se hoje a Omã, ao aeroporto de Seeb (Sibo), exactamente no mesmo local onde, no século XVI, os lusos navegadores arribaram e ergueram um forte.

O mais alto responsável pelo departamento de História do Ministério da Cultura e Património do Omã apela aos investigadores portugueses para ali irem estudar o legado deixado pelos nossos antepassados há cinco séculos.

«Parece impossível que não tenha ainda sido destacado para cá um embaixador português ou criado um centro cultural», lamenta o professor Mohamed Said Nasser Al-Wahaibi. «Vendo bem coisas, o intercâmbio entre Portugal e o nosso país durou cento e cinquenta anos».

Al-Wahaibi recebe-nos no seu escritório, situado no segundo andar do edifício adjacente ao Museu de História Natural, e nem é preciso colocar-lhe qualquer questão. Bebida a taça de café, símbolo da hospitalidade beduína, e comentada a brutalidade do calor dessa época do ano, o historiador desata a falar. Com carácter de urgência.

«É preciso que se estreitem os laços entre portugueses e omanitas», começa. «Para isso há que fazer um estudo das suas relações sociais e até mesmo no que respeita à consanguinidade». Sente-se, pelas suas palavras, que o desejo do professor é genuíno. «Em Omã tudo que se conhece acerca de Portugal enquadra-se numa perspectiva militar», continua. «Sabe-se que os portugueses aqui chegaram com a sua armada, combateram os omanitas, conquistaram o reino, tentaram espalhar o Cristianismo e, século e meio depois, derrotados, acabaram por ser expulsos». Mas na sua opinião estes são aspectos de somenos importância. Que há que desdenhar, pois a história já os julgou sobejamente. «Entretanto, nos outros domínios tudo está por fazer. É urgente que venham cá investigares portugueses, nem que seja para fazer um estudo apurado sobre as vossas fortalezas».

 

ARQUITECTURA RELIGIOSA E MILITAR

Repare-se que Al-Wahaibi refere “vossas fortalezas” e não “nossas fortalezas”. Surpreendente afirmação, sobretudo tendo em conta que é feita pelo representante de um Governo que tenta minimizar o papel dos portugueses (ou de qualquer outros estrangeiros) na formação do País. Se entrarmos no domínio da miscigenação de raças, a coisa complica-se ainda mais. No actual mundo árabe, mal grado os gigantescos fossos que continuam a separar países como a Arábia Saudita, o Iraque ou a Síria, quem quiser singrar na vida convém que se afirme como árabe acima de qualquer outro parentesco ou simpatia.

Mas este catedrático de Mascate não é uma pessoa qualquer. Esteve em Portugal por duas ocasiões, para «organizar semanas culturais omanitas com o apoio da Fundação Gulbenkian», e conhece bem alguns eruditos portugueses. Nomeadamente o historiador Dias Farinha, «um grande amigo». Al-Wahaibi diz-se impressionado pela abundante documentação que encontrou na Torre do Tombo e refere as «similaridades físicas comuns aos nossos povos», para concluir, com toda a convicção, que «são mais os laços que nos unem do que aqueles que nos separam».

Em Omã não só existem vestígios da arquitectura militar, como há muitas palavras de origem portuguesa – assim de repente, o professor lembra-se de quatro: bandera, greja, mesa, roda – já para não mencionarmos os luso-descendentes que se encontram um pouco por todo o Golfo, com maior incidência na zona montanhosa, já em território dos Emiratos Árabes Unidos, vizinha à península de Mussandão, no estreito de Ormuz.

«É comum verem-se ainda hoje nessa região e em todo o Omã, pessoas de olhos verdes e azuis», diz. Facto que os mais atentos bem podem constatar. E o que dizer das corridas de touros regularmente organizadas na província nos meses de Inverno e do fabrico, mais ou menos ilegal, de uma aguardente local à base de figo?

Há no entanto quem minimize a influência portuguesa na região, sobretudo no que ao sangue diz respeito. O investigador de origem síria, Al-Tadmori, assessor do xeque do emirato de Ras-Al Khaimar é um deles. «Não está provado que essas pessoas sejam descendentes de portugueses», afirma. O historiador refere-se nomeadamente à dita tribo “suhur”, que tradicionalmente habitava as montanhas. «Em Árabe», continua ele, «“suhur” significa aquele “que não paga impostos”, que é “devedor” e, portanto, proscrito». Segundo ele, a rebeldia das gentes de montanha remonta à época do profeta Maomé. Quanto ao dialecto que falam (grande parte do seu linguajar não é entendido pelos restantes árabes) e à palidez da sua pele, Al Tadmori vai buscar explicações geográficas e climatéricas. «A cor da sua pele deve-se ao facto de habitarem as montanhas, mais afastados do calor intenso e da salinidade na atmosfera», afirma. Quanto ao dialecto… «É normal», diz, «já que essa gente viveu isolada durante muito tempo».

O assunto é melindroso. É evidente que ao professor Al-Tadmori não lhe interessa aprofundar a questão, apesar dos «seja bem vindo» que repete ao fim de cada frase ou na sequência de alguma constatação ou esclarecimento das dúvidas que lhe coloco. Prova do seu pouco à vontade foi o ter-me deixado aos cuidados (?) de um seu assistente, que supostamente deveria organizar uma viagem ao interior – para eu assim poder contactar com alguns dos anciões “suhur”, os raros que ainda vivem em casas de pedra e não se renderam ao prazer dos ares condicionados – mas em vez disso fumou Malboro atrás de Malboro e passados dez minutos estava a falar-me de negócios.

Apesar das dúvidas do professor Al Tadmori, o certo é que na costa dos Emiratos existem mais de «60 torres de vigia», a grande parte «comprovadamente de origem portuguesa», nas suas próprias palavras. Da antiga cidade portuária de Julfar, fundada pelos portugueses, recuperada pelos árabes e mais tarde reconquistada pelos ingleses, restam apenas ruínas cobertas pela areia. O sinal mais visível da nossa presença é o castelo de Dayia (“luz” em Árabe), construído nos finais do século XVI.

 

ROSTOS FAMILIARES

Nos países do Golfo, o assumir de descendência lusa depende da posição social do inquirido. Se a pessoa em questão é de origem social humilde, não hesita em afirmá-lo. Como é o caso de Abdul Tariq, guarda do museu de Ras-Al Khaimar, um verdadeira sósia do António Variações, que quase ficou ofendido só porque o confundi com um paquistanês. Realmente… Nesta zona do globo: olhos verdes como aqueles, só podem ser de “patane” ou então de luso-descendente.

No extremo oposto, Mohamed Al Khaisi, de 53 anos, chefe da tribo beduína Bani Shemeli – apesar de alguns locais terem-me dito que descendia de portugueses – negou essa possibilidade. Ou melhor, remeteu-a para um longínquo antepassado. Em causa está a sua posição social – é um íntimo do xeque do emirato – e a sua riqueza pessoal. Talvez tenha pesado o facto de o ter visitado acompanhado por um filho de uma família de distintos do Emirato. Também eles próximos do envelhecido xeque de Ras Al Khaimar, que antes da descoberta do petróleo não passava de um simples beduíno. Adivinhava-se, no entanto, uma certa simpatia da sua parte quando nos recebeu, numa enorme sala decorada com grandes sofás, trazendo nas mãos um pequeno fogareiro de barro com incenso a arder, que fez circular por entre os presentes para que estes se perfumassem como é tradição fazer.

Joaquim Magalhães de Castro

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