Património não deve ser vergonha
É quando nos deparamos com outras realidades que muitas vezes conseguimos discernir o que parece certo ou errado e nos apercebemos dos bons e dos maus exemplos. Na minha recente deslocação a Malaca constatei que o património histórico assente no legado colonialista de três potências europeias é uma realidade inquestionável e faz indubitavelmente parte do cartaz turístico da cidade.
Aqui parece não haver ressentimentos sobre a conquista dos portugueses com recurso ao poder do fogo, no longínquo ano de 1511, sob o comando de Afonso de Albuquerque, o “Terribil”. Também não foi apagada da História a presença holandesa, que sucedeu aos portugueses em 1641, nem a britânica, a partir de 1795.
Uma das principais atracções da cidade é “A Famosa”, em tempos idos a Porta de Santiago, com vista para o topo da colina onde se encontra a igreja de São Paulo, antiga capela de Nossa Senhora do Oiteiro (ou Outeiro) onde São Francisco Xavier operou milagres e os seus restos mortais permaneceram cerca de nove meses antes de serem transladados para Goa.
Outro ex-libris é a réplica da nau Frol de la Mar, cujo original participou na conquista de Ormuz, sob o comando de Afonso de Albuquerque (1507), esteve na batalha de Diu travada pelo vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida (1509), e desempenhou importante papel nas conquistas de Goa (1510) e de Malaca (1511).
Na visita às cobertas do navio-museu encontrei painéis, pinturas e modelos ou amostras relacionadas com a presença portuguesa, holandesa e britânica, assim como interessantes referências ao Sultanato de Malaca, com realce no primeiro caso para uma estátua em bronze de Afonso de Albuquerque ladeada por peças de artilharia.
A poucas centenas de metros da réplica estão vestígios e reconstruções das muralhas edificadas e remodeladas pelas três potências ocidentais, em lugar contíguo à igreja holandesa “Christ Church Melaka”.
Na parede que vem de um edifício anexo à igreja deparei-me com placas alusivas ao período holandês e britânico, mas também com uma escultura em pedra com as armas de Afonso Henriques, 1º Rei de Portugal, encontrada durante as escavações na colina de Malaca.
De imediato, fui invadido por um misto de sensações antagónicas. Por um lado, senti um contido orgulho, porque apesar do Sultanato de Malaca ter sido conquistado com recurso à violência pelo invasor português, também é certo que este episódio está indelevelmente ligado à história de Malaca, não sendo por isso apagado dos seus anais, conforme testemunhei na visita ao centro histórico da cidade.
Por outro lado, senti tristeza ao saber que em Macau, que foi cedida aos portugueses sem guerras ou demais actos bárbaros, há uma evidente vergonha pelo legado português, por vezes erroneamente conotado de colonialista.
Um desses casos aconteceu com a remoção do escudo português na versão digital (PDF) dos Boletins Oficiais que foram publicados antes da transferência de poderes, conforme denunciou a Imprensa portuguesa do território em Outubro de 2011.
Também o imbróglio a envolver a casamata de Coloane, que nunca pode ser vista como símbolo do colonialismo, mas antes como parte integrante da então rede defensiva do território, é mais um exemplo a pôr em xeque o legado português que faz irremediavelmente parte da identidade de Macau.
Já a História ensinada na esmagadora maioria das escolas locais é deplorável, porque se assiste a uma contínua omissão sobre importantes factos relacionados com a presença dos portugueses que, em termos oficiais, remonta a 1557. E o que dizer do Museu de Macau, que dá uma pálida imagem do que foi a nossa presença nesta parte da Grã Província, à qual os portugueses chamavam China?
Outra situação grave é o documento sobre o Centro Histórico de Macau, colocado a consulta pública pelo Instituto Cultural, entre 10 de Outubro e 8 de Dezembro de 2014, ter apresentado imprecisões várias que resultaram no desprezo pela secular presença portuguesa nesta Cidade do Santo Nome de Deus. Resta-me acrescentar que Macau (2005) e Malaca (2008) são Património Mundial da Humanidade.
Medan Portugis
Os luso-descendentes do “Kampung Portugis” (Bairro Português) são hoje reconhecidos como parte integrante de uma comunidade sui generis de Malaca, sendo uma dessas características a prática do Catolicismo num país de maioria muçulmana.
Esta particularidade parece fazer toda a diferença, porque na época festiva do Natal o “Kampung Portugis” enche-se de turistas malaios, asiáticos e ocidentais que professam vários crenças religiosas e pretendem contactar com o exotismo desta comunidade, seja através da gastronomia portuguesa por ela promovida (obviamente adaptada aos sabores locais), seja pelos ricos enfeites natalícios que se encontram nas fachadas das vivendas que povoam o bairro.
Outra especificidade que torna especial muitos destes malaqueiros é falarem o “português antigo”, dialecto que insistem ser diferente do “papiá kristáng” deixado pelos luso-holandeses de Malaca.
O “ser-se português” constitui ainda um modo de subsistência para várias famílias luso-descendentes que exploram os seus bares ou restaurantes especializados em pratos de marisco português, numa praça com vista para o mar denominada “Medan Portugis”.
Se a Malásia teve visão para potenciar o legado histórico de uma região, o inverso parece acontecer em Macau. E temo que a culpa nem seja do Poder Central!
PEDRO DANIEL OLIVEIRA