O Nosso Tempo

Se São Francisco fosse jornalista…

A Paz é a verdadeira notícia – tal é o mote da mensagem do Papa para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2018.

E a “ oração” que se segue, adaptada da conhecida prece de São Francisco pela Paz, está incluída na mensagem do Pontífice, publicada no Vaticano a 26 de Janeiro último e que só muito recentemente li.

Se São Francisco fosse pois jornalista… escreveria assim, combatendo as “fake news” e inspirando-se nos textos bíblicos:

Senhor, fazei de nós instrumentos da vossa paz.

Fazei-nos reconhecer o mal que se insinua em uma comunicação que não cria comunhão.

Tornai-nos capazes de tirar o veneno dos nossos juízos.

Ajudai-nos a falar dos outros como de irmãos e irmãs.

Vós sois fiel e digno de confiança; fazei que as nossas palavras sejam sementes de bem para o mundo:

onde houver rumor, fazei que pratiquemos a escuta;

onde houver confusão, fazei que inspiremos harmonia;

onde houver ambiguidade, fazei que levemos clareza;

onde houver exclusão, fazei que levemos partilha;

onde houver sensacionalismo, fazei que usemos sobriedade;

onde houver superficialidade, fazei que ponhamos interrogativos verdadeiros;

onde houver preconceitos, fazei que despertemos confiança;

onde houver agressividade, fazei que levemos respeito;

onde houver falsidade, fazei que levemos verdade.

Amen.

Achei interessante e oportuno analisar o conteúdo, as múltiplas mensagens desta improvisada “prece”, com algum pormenor para, por contraposição, tentar retratar a realidade mediática nos nossos dias e, ao mesmo tempo, discernir os “mandamentos”, o código de conduta, de um jornalismo ético, isto é, fundado na verdade.

Pura ingenuidade de crente?

Mas o que nos resta a nós senão visar os ideais mais altos, no nosso mundo subjugado, tão frequentemente, aos desígnios mais baixos? Se baixarmos os braços, como viveremos dignamente o tempo presente e que herança moral deixamos às gerações futuras?

A verdade na Comunicação Social é imperativo cada vez mais improvável, cada vez mais a contra-corrente, é verdade, mas num mundo confuso, desorientado, pondo em causa valores e regras há muito estabelecidos, para promover em sua substituição paraísos saídos da cabeça de gurus de todas as espécies, o imperativo da verdade torna-se ainda mais premente.

Analisemos pois a novíssima oração que poderia ter sido proferida por São Francisco, tendo subjacentes os objectivos da verdade, e tendo como referência o jornalismo dos nossos dias.

 

A VERDADE COMO CIMENTO DA COMUNHÃO

Senhor, fazei de nós instrumentos da vossa paz. Fazei-nos reconhecer o mal que se insinua numa comunicação que não gera comunhão.

De quantos ódios não é alimentado o nosso quotidiano, narrado pelas notícias? De quantos preconceitos, de quantos medos convertidos em insultos?

Caímos, desde logo, na armadilha mediática de considerar unicamente existente o que nos é contado, da maneira que é contado. Aqui, um jornalismo sem escrúpulos reconstrói o mundo à sua imagem, isto é, à imagem das suas intenções, dos seus preconceitos, e tantas vezes conforme aos objectivos de uma agenda oculta, guiada por mãos invisíveis, dos que lhes pagam para difundir as suas mensagens.

O grande objectivo, o grande ideal da família humana é o duplo sentimento de partilha e comunhão. Assim enunciado de forma geral e abstracta, tal desiderato encontra as suas expressões concretas em tudo o que une, afastando-se de tudo o que divide.

E neste ponto específico a agenda é pesadíssima, porque se trata de construir pontes, múltiplas pontes:

– entre alguns que têm em excesso, adquirido da forma mais ínvia, e a imensa maioria dos deserdados, privados de tudo;

– entre os grandes interesses económicos que delapidam a Natureza e os frágeis grupos de cidadãos e suas associações que tentam preservá-la, para bem de todos;

– entre os nacionalismos que se afrontam, competem e se combatem, enaltecendo míticas qualidades nacionais e ao mesmo tempo estigmatizando o estrangeiro, o imigrante, o refugiado;

– entre religiões que disputam o domínio do mundo, tentando converter, pela força e pelo medo, populações inteiras, ao seu credo obscurantista.

 

A MENTIRA COMO VENENO

Tornai-nos capazes de tirar o veneno dos nossos juízos. Ajudai-nos a falar dos outros como de irmãos e irmãs.

O que nos impele a ver os outros como inimigos, como concorrentes, como obstáculos ao desejo de um protagonismo exclusivo, fruto da nossa vaidadezinha ridícula, e da ganância do poder e da fama que lhe estão associados?

O espectáculo da política dos nossos dias é muitas vezes o das personalidades que se manifestam, clamando pela atenção exclusiva, em vez de serem instrumentos de causas nobres.

E os media servem de palco aos múltiplos exibicionismos. De tal modo que saber servir-se deles é, contrariamente às propostas políticas coerentes e válidas, a forma mais eficaz de influenciar o comportamento dos cidadãos.

Vós sois fiel e digno de confiança; fazei que as nossas palavras sejam sementes de bem para o mundo: onde houver rumor, fazei que pratiquemos a escuta.

O rumor, o boato, como princípios de “verdade”, mesmo não provada. Para gente ignorante ou incauta, tudo o que se publica tem pelo menos uma ponta de verdade que, oportunamente ampliada, se transforma na “verdade” toda. Sem cuidar de saber que mal isso causa, que pessoas fere, que reputações arruína.

Onde houver confusão, fazei que inspiremos harmonia; onde houver ambiguidade, fazei que levemos clareza; onde houver exclusão, fazei que levemos partilha.

Ter um espírito pacífico é o único modo de construir a cidade dos homens. Ora, pelas regras da competição económica entre grupos, da rivalidade nas carreiras profissionais, da emulação no mundo do espectáculo e na Comunicação Social, a vida tornou-se num combate cruel para a maioria.

Ao acordar pela manhã veste-se o camuflado de guerrilheiro e parte-se para o combate, antecipando já o número de conquistas (e de vítimas…) no fim do dia. Na cidade impera a lei da selva. É matar ou morrer.

A nossa civilização tornou-se, mais do que qualquer outra no passado, numa gigantesca história de lobos e cordeiros. E quem, não sendo naturalmente lobo, não lhe veste pelo menos a pele, só para parecer – para o senso comum – ou é tolo ou é suicida!

Neste estado de coisas, não se pode estar senão nos antípodas de um espírito de paz. E o jornalismo transmite isso, sem nuances, um tantas vezes exagerando.

Onde houver sensacionalismo, fazei que usemos sobriedade; onde houver superficialidade, fazei que ponhamos questões verdadeiras.

Pois é frequentemente através do sensacionalismo que se assassina a verdade. Só para vender mais. Só para aumentar as receitas de publicidade. É afinal a guerra, não é?

 

OS PROVEITOSOS LUCROS DA DISCÓRDIA

Onde houver preconceitos, fazei que despertemos confiança; onde houver agressividade, fazei que levemos respeito; onde houver falsidade, fazei que levemos verdade. Amen.

Só a discórdia é lucrativa. Uma sociedade sem escândalos não garante o ganha-pão a uma certa espécie de jornalismo. Do mesmo modo que uma conversa sem maledicência não é… interessante.

A mensagem do Papa é pois um imenso desafio, pelo que contém de exigência moral.

Quem, no plano mediático, está disposto a aceitar o desafio?

Carlos Frota 

Universidade de São José

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