Papa Francisco: para um regresso ao humano
Se se pode ver – e vê-se! – uma linha condutora nas intervenções da figura de audiência mundial, que é o Papa Francisco, essa linha pode ser definida pelo esforço do Pontífice, de recentragem da civilização mundial – ou do que a tal superficialmente se assemelha – nos valores matriciais da nossa comum humanidade. Valores presentes na mensagem cristã e igualmente na das grandes religiões e sistemas filosóficos do nosso mundo.
Estamos num cotovelo da História, numa esquina de rua do ponto de vista da civilização – e de tudo isso tem o Chefe da Igreja Católica uma consciência apuradíssima.
E sem professar o sincretisno que tantos receiam, Francisco não hesita a chamar todos os que podem contribuir para um regresso à autenticidade do homem… ficando esta por definir, como dirá o cepticismo dos que não acreditam na bondade de tal diligência ou se lhe opõem.
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Esta forma algo pomposa de principiar a minha crónica equivale tão só à tentativa de enquadrar a visita do Papa a Cuba, aos Estados Unidos e Nações Unidas, no contexto mais geral de propósitos e intenções que formam o desígnio último do Pontífice – ser fiel à sua missão apostólica ou missionária, como gosta de sublinhar.
Vou redigindo esta crónica à medida que prossegue a visita. E, por razões óbvias, o meu texto não pode deixar de ser um caleidoscópio de impressões e de emoções que fatalmente me vai transmitindo esse homem singular.
Mas, para começar pelo princípio da minha narrativa sobre a visita, como é que há muito tempo venho pensando nesta particular digressão do Papa ao estrangeiro?
Um grande desafio
Como um grande desafio do seu pontificado . Porquê esta digressão em particular, já que o mundo testa permanentemente a liderança espiritual singular, deste homem singular que por dever de função – que a História moldou – é ao mesmo o Chefe de um micro-Estado e o guia supremo de uma nação sem fronteiras que equivale ao país mais populoso do mundo?
Teste do pontificado é-o a vários títulos, sublinhados pelas diferentes etapas do périplo.
Se Cuba assiste ao último capítulo de uma revolução socialista que se rende cada vez mais ao realismo do mundo globalizado – e o Papa foi interveniente decisivo nesse processo, como se sabe, como medianeiro da reconciliação cubano-americana – já a América representa um outro grande desafio.
A sociedade americana é hoje (e cada vez mais) uma sociedade entre duas civilizações, uma inspirada ainda pelo puritanismo protestante e pelo conservadorismo católico; e outra que, no seio daquela, se foi gerando, como reacção, e que aponta para modos de pensar o humano (e o divino?) de forma completamente diferente. Uma América post-americana, de algum modo.
Cuba: o adeus às armas
Mas detenho-me na primeira etapa do périplo papal, Cuba. São várias as imagens fortes, aqui: Francisco visitando em sua casa um muito debilitado, quase nonagenário Fidel, a quem oferece um ou vários livros de espiritualidade cristã, segundo ouvi e li na Comunicação Social.
Quem diria há décadas que o desafiante El Comandante, pai de muitos sonhos utópicos da minha geração, ainda haveria de acolher, na sua sala de estar, o símbolo mesmo dessa interpretarão do mundo e da História que Castro desafiou toda a sua vida, pretendendo criar – e com relativo sucesso o fez – uma sociedade inspirada na violência revolucionária dos espoliados?
Depois, a hospitalidade, a quase cumplicidade amigável com Raúl Castro – um homem que claramente admira o Papa Francisco. Isso pressente-se quando ambos estão juntos.
É talvez um homem que pretende redescobrir o seu destino, já na recta final da sua vida, quando sabe que o modelo social e político em que acreditou e de que foi co-obreiro está esgotado…
Depois, ou melhor, antes de tudo, os milhares e milhares de cubanos nas ruas, acolhendo esse portador de esperança que é por isso mesmo a prova provada do falhanço ideológico do castrismo.
O homem novo que o processo revolucionário pretende ter criado é afinal o homem de sempre – que se alimenta também de algo mais do que o pão de cada dia. E que expressou de forma mais do que evidente essa fome espiritual há muito não satisfeita.
A (segunda) revolução americana
Em seguida a América, cínica e sincera; generosa e egoísta; protestante e branca; e, cada vez mais, multi-étnica e multi-cultural.
A sociedade americana, tal como a posso descodificar à distância, não vive um período de evolução, mas de autêntica revolução sociológica. O termo pode parecer forte, mas as suas consequências abonarão cada vez mais a favor desta tese.
Desde o repensar de instituições básicas como a família, o conceito de casamento por exemplo, até ao modo como se gera a realidade da política – e por consequência o debate político – tudo mexe na sociedade americana. Segundo uma agenda ética e social protagonizada pelos democratas, mas que os republicanos opõem tão só o seu radicalismo… económico.
A função dos EUA como matriz do sistema económico global parece ter invadido tudo. E o seu sentido de sobrevivência como superpotência também. Assim, os Estados Unidos vivem uma transição que, pondo em causa valores tradicionais em que o protestantismo e catolicismo se reviam, substituiu-os pela lógica das minorias e o pragmatismo dos negócios que invade os outros sectores da vida – e que acaba por constituir o catecismo de uma nova “teologia da sobrevivência”, repito, como super-potência económica, em risco de perder o seu estatuto de domínio (contestado) do mundo.
É a esta sociedade em revolução – e sobretudo aos milhões de descontentes deste modelo de civilização, em ruptura com o passado, que o Papa foi falar, convertendo habilmente essa viagem numa espécie de peregrinação ao santuário dos valores tradicionais, uma última tentativa de regresso às origens, não no sentido do regresso ao passado. mas nesse outro de reencontro com as referências matriciais.
Condenado a desagradar muitos, pelas suas posições exageradamente à esquerda ou à direita, segundo os pontos de vista, o Papa, no seu improvável discurso no Congresso, mostrou como as divisões entre esquerda e direita do debate político e social habitual se subalternizam perante a extrema urgência das soluções inadiáveis.
Esta realidade posso a expressar na imagem caricatural do casal que discute quem há-de ficar no lado esquerdo ou direito da cama, quando é iminente o terramoto que destruirá a casa…
Carlos Frota
Universidade de São José