Natal na Rota da Seda

Um gole de Porto no oásis

Kashgar, cidade em fervilhante actividade há mais de dois mil anos, voltou a abrir as portas para o mundo há apenas três décadas e meia. À semelhança das congéneres Samarcanda e Bucara, imortalizou o seu nome forjando-o à Rota da Seda que, durante séculos, ligou comercialmente a China, a Índia e o Mediterrâneo. Toda a Kashgaria – o nome histórico da região situada a oeste da bacia de Tarim – fora também um importante ponto de passagem para sucessivos exércitos invasores. Depressão com o impressionante comprimento de mil e 500 quilómetros, o Tarim abrange a maior parte do extremo oeste da China, e consiste quase inteiramente num deserto hostil, pontilhado com oásis, conhecido como Taklamakan, “o deserto do não retorno”.

Ao contactar com aquela terra árida habitada por gente de aparência agreste mas dócil no trato, vieram-me à mente estranhas recordações fundamentadas no mundo literário da minha adolescência, onde se fundiam os universos de Charles Dickens, Bertolt Brecht e, sobretudo, Panait Istrati, um novelista romeno que me tinha duplamente fascinado: por aquilo que escrevera e pelo modo como vivera. Ou seria porque, afinal, se limitara a escrever o que muito simplesmente tinha vivido? A verdade é que Panait Istrati não passava de um andarilho que, um dia, doente, à beira do desespero, se lembrou de contar as suas histórias ao humanista e escritor Romain Rolland. A partir daí elas apareceriam nos jornais e divulgar-se-iam; os livros viriam a seguir.

A ambiência que me fora sugerida pela obra de Istrati surgiu logo no decorrer da viagem de dois dias que tive de fazer através do planalto até ao imenso deserto. Na estrada, a quase ausência de veículos motorizados (à excepção de alguns camiões de fabrico chinês e um ou outro jipe militar) era compensada pelas inúmeras carroças puxadas por jumentos e conduzidas por velhos de longas barbas brancas, ou então mulheres de ar espevitado com lenços floridos na cabeça e saias rodadas. Pastores montados a cavalo orientavam as manadas de iaques e de cabras enquanto grupos de crianças, livres como a poeira ao vento, celebravam a vida abrindo para nós sorrisos de ouro e acenando-nos com as mãozitas sujas. Preso num fascínio permanente, tinha a impressão de fazer parte do elenco de uma lendária longa-metragem projectada numa tela gigantesca. Era como se tivesse ficado para sempre cativo, incapaz de sair do enredo de um dos mais belos contos de Panait Istrati.

Toda essa pantanosa região pejada de inúmeros riachos tinha como nervo vital (e presumo que tenha ainda) a povoação de Tashkurgan, que significa “fortaleza de pedra” na língua local. Eis o imenso lar das marmotas, do raro leopardo das neves e dos tajiques e quirguizes, antigos adoradores de águias convertidos à pastorícia, sem abdicarem, contudo, da sua vida seminómada e da sua mais que óbvia diferença étnica e cultural.

Os tajiques têm aspecto caucasiano e estão filialmente ligados aos seus parentes da Ásia Central e aos wakhis, etnia que habita o norte do Paquistão e o oeste do Afeganistão. Os quirguizes, por seu lado, são descendentes de tribos nómadas de origem turcomongol que se estabeleceram na região há muitos anos.

Era frequente deparar com famílias inteiras deslocando-se em caravanas, acompanhadas pelos seus raros haveres: tendas, burros, cabras, cavalos e camelos vagarosos. Os habitantes desta região sempre tiveram, por razões de afinidade étnica e cultural, um relacionamento muito mais estreito com as repúblicas adjacentes da antiga União Soviética, e mesmo com o norte do Paquistão, do que com o resto da China. Por isso mesmo, ao longo dos séculos, a China imperial manteve um controlo cuidado sobre estas fronteiras e policiou fortemente toda a Rota da Seda, numa relação de permanente conflito com as tribos nómadas indígenas.

Kashgar situa-se a mil e 300 metros acima do nível do mar, precisamente num desses oásis habitado por uigures, a etnia predominante e a mais numerosa das doze minorias que povoam o Xinjiang (recorde-se que na China existem 55 minorias), e que descende das tribos turcas que vivem nestas paragens desde o século XI. Ultrapassada a sua fase guerreira, transformaram-se, na sua maior parte, em agricultores e comerciantes, coabitando pacificamente com os uzebeques, seus primos directos, e com os cazaques, nómadas de origem mongol conhecidos como cavaleiros de grande craveira. Vivem aí outras minorias, como os tártaros, os daurs, os mongóis e o que resta da tropa de Russos Brancos fugidos à revolução bolchevique de 1917.

Os chineses han constituíam ainda uma minoria, mas não por muito tempo, pois Pequim tencionava triplicar a população da remota província com a ajuda de um contingente de colonos vindos das regiões mais populosas da China. Com uma cajadada matava dois coelhos: atenuava os problemas de superpopulação a leste, e colonizava a oeste.

Embora o Mandarim seja considerado, desde há muito, o idioma oficial da China, cada etnia tem os seus dialectos e idiomas próprios, assegurados por lei. No Xinjiang, para todos os efeitos, o Uigur, também chamado Turki, é a língua franca e escreve-se de novo no seu formato habitual, que é o alfabeto árabe, depois de durante muitos anos ter sido utilizado o sistema fonético latino. Essa medida imposta durante a Revolução Cultural (medida bastante impopular, note-se) visava, veja-se lá, reduzir o analfabetismo.

À excepção dos chineses e dos raros russos, todas as outras etnias professam o Islamismo suni, embora sem a devoção e o fanatismo presentes no vizinho Paquistão.

Entrei em Kashgar ao anoitecer e desde logo senti que iria ficar por ali algum tempo. De facto, não só aí permaneci todo esse seco e frio Inverno, como voltaria a visitar de novo a cidade e a região em diversas ocasiões. No decorrer de uma década e meia, fui testemunha das imensas transformações entretanto acontecidas. O que mais me chocou foi a demolição sistemática dos edifícios públicos de traça neoclássica construídos na década de 1950 pelos soviéticos, e que as autoridades chinesas decidiram classificar de “obsoletos”, substituindo-os por horrorosos prédios de péssima qualidade que mais parecem casas de banho viradas ao contrário. Em nome dessa “higiene” urbana (um conceito altamente discutível) foi também demolido o bazar milenar da cidade, património único, testemunho vivo do comércio na Rota da Seda, e outras relíquias da arquitectura local, como seja os hotéis Seman e Qinibagh, onde funcionavam os antigos consulados britânico e russo. Foi precisamente no famigerado Qinibagh que fiquei alojado.

Fazia parte da última “carrada” de visitantes daquela temporada. Comigo tinham viajado alguns negociantes paquistaneses que, depois de uma breve estadia em Kashgar, seguiriam para Urumqi (capital do Xinjiang), Xian, Cantão e, finalmente, Hong Kong, com o inevitável saltinho a Macau (um ou dois dias), para tentar a sorte nas mesas dos casinos locais. Essa era uma rota que se tinha vindo a popularizar ao longo dos últimos anos.

Na altura eram ainda poucos os ocidentais que se aventuravam por estas paragens. Fiquei acomodado num dormitório onde já se encontravam doze viajantes japoneses. Muitos deles visitavam o Xinjiang porque um famoso documentário televisivo ilustrado por uma banda sonora composta por Kitaro, músico nipónico New Age, tinha popularizado aquela remota região, mas também haveria, porventura, quem o fizesse em busca do seu passado budista. Um passado inscrito nas ruínas das outrora prósperas cidades perdidas no deserto, nas caves budistas de Dunhuang e nalguns hábitos bastante arreigados no povo uigur, como, por exemplo, rapar o cabelo como fazem os monges.

A imagem dos barbeiros na berma da rua ou nos mercados, de navalha em riste e bacia de alumínio com água quente ao alcance da mão, debruçados sobre as cabeças de velhos e crianças era comum no dia-a-dia da cidade.

Um outro hábito budista preservado até hoje é o modo como os velhos uigures se sentam nas carpetes das casas de chá. É um sentar ajoelhado, tal como os japoneses o fazem sobre o tatami.

Foi com o interessante e excêntrico grupo de que atrás mencionei (alguns deles queriam atravessar parte do deserto numa carroça puxada por jumentos!) que depressa criei laços de amizade, e por ali fiquei, em família, celebrando uma reedição da centenária amizade luso nipónica numa terra com um nome sugestivo. Kashgar pressupõe imobilidade, final de jornada. No caso, um longo interregno.

O Natal desse ano teve ceia japonesa seguida de uns biscoitos de fabrico local e um muito adocicado Turfan Port Wine (versão local do nosso Vinho do Porto), que serviu na perfeição de sobremesa. Qinibagh era o nosso lar, e Kashgar a cidade que nos tinha enfeitiçado.

Joaquim Magalhães de Castro

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