PADRE RUIJI IZUMI

«Não estamos no Japão para criar colónias de qualquer espécie»

PADRE RUIJI IZUMI, JESUÍTA E DESCENDENTE DE UM IRMÃO DE SÃO FRANCISCO XAVIER

Entrou para a Companhia de Jesus com o mesmo sonho que o Papa Francisco: ser missionário no Japão. Ao longo dos últimos 62 anos, o padre espanhol Luis Fontes assumiu como missão o desígnio de dar a conhecer o Evangelho em terras nipónicas. O sacerdote, que alega ser descendente de um irmão de São Francisco Xavier, naturalizou-se japonês com o propósito de demonstrar que a Igreja Católica não está no Japão «para criar colónias de qualquer espécie». Foi como Ruiji Izumi, o seu nome japonês, que falou a’O CLARIM, à margem da visita que o Santo Padre fez a Nagasaki no final de Novembro.

O CLARIMA mensagem que o Papa trouxe a Nagasaki foi de paz e de esperança. Mas foi também uma mensagem sobre a importância da vida numa cidade conhecida pela morte, destruição e martírio. Que importância tem a mensagem proferida pelo Santo Padre para os católicos de Nagasaki?

PADRE RUIJI IZUMI– É uma mensagem muito importante, se tivermos em consideração que o convite para que visitasse o Japão foi feito pelo Governo japonês. O Primeiro-Ministro, Shinzo Abe, visitou o Vaticano há uns anos e convidou pessoalmente o Papa para vir ao Japão. A ideia de paz no mundo é um desígnio que o Governo japonês tem em elevada consideração. O Japão quer ser responsável por este movimento mas, obviamente, não o pode impor a outros países. O povo japonês foi o único povo a sofrer com a devastação causada por bombas atómicas, mas há outras nações que não vêem o Japão como um país de paz. Quando o Papa vem a Nagasaki, fala de paz, invoca-a em nome da Humanidade e sustenta que a paz no mundo deve ser uma prioridade para todos, a mensagem ganha bem mais relevância. O Papa Francisco é um homem de paz e de diálogo. Foi o primeiro Papa católico a visitar Abu Dhabi e a Península Arábica. Este esforço deixa bem patente o interesse que ele tem em juntar todas as religiões, de forma a que possam trabalhar em prol da paz e não da guerra. Por outro lado, a visita que ele fez ao Japão foi muito importante, uma vez que ele, como certamente sabe, sentiu, como eu, a chamada para se juntar aos jesuítas quando tinha dezasseis anos e o objectivo dele era vir para o Japão…

CLAcabou por não vir, ainda assim…

P.R.I.– Bem, ele ofereceu-se para servir no Japão, mas foi-lhe diagnosticado um problema de saúde. Tinha um problema nos pulmões. Quem o examinou foi o antigo Superior da Companhia de Jesus no Japão, o padre [Pedro] Arrupe. O padre Arrupe vivia nos arredores de Hiroshima quando a bomba atómica explodiu. Quando conheceu o então jovem Jorge Bergoglio, disse-lhe: «A tua ficha médica diz que só tens um pulmão em boas condições. O outro deixou de funcionar». No Japão, os estrangeiros, se não forem cautelosos, adoecem com facilidade. Num mesmo dia o tempo muda profundamente. Vivo no Japão há sessenta anos e a minha pele ainda não se adaptou ao clima. Se ando com os pés descalços no tatami em Agosto, durante o tempo quente, fico logo com corrimento no nariz. Isto significa que o meu organismo ainda não se adaptou ao Japão. Constipo-me muito facilmente. Durmo com meias a maior parte das noites porque tenho a impressão de que ando sempre com os pés gelados. O meu corpo ainda não se habituou a este país.

CLComo é que interpreta a mensagem que o Papa Francisco deixou no Parque da Paz? Nagasaki foi destruída pela única bomba de plutónio alguma vez detonada e o Papa falou da importância do desarmamento e da não-proliferação de armas. Vivemos tempos incomuns porque vemos, por um lado, as nações a professarem as vantagens do comércio livre, mas por outro lado a investir cada vez mais dinheiro na aquisição e no desenvolvimento de equipamentos militares. A mensagem que o Sumo Pontífice deixou em Nagasaki pode ajudar a mudar estas circunstâncias?

P.R.I.– O lema que o Vaticano escolheu para a visita do Papa ao Japão foi “Proteger Toda a Vida”; defender a vida, todos os aspectos da vida. Isto inclui não só a vida humana, mas também todas as outras formas de vida: as que encontramos na Natureza, na vida, na floresta amazónica. Tivemos recentemente este sínodo centrado na Amazónia. O mundo natural, devemos ter a capacidade de cuidar dele. Somos responsáveis por ele. Este aspecto é, a meu ver, importante. O Cristianismo não é uma religião privada, é uma religião que entende que a Humanidade é uma família. O Papa é o representante de uma religião que pugna pela paz, para que o nosso planeta possa ser uma casa para todos. Francisco tem vindo a trabalhar de forma muito árdua para que possamos assimilar esta mensagem. Tem feito um esforço pessoal muito grande para convencer tanto os Governos como os povos a aceitar refugiados e emigrantes de outros países. Estamos o mais das vezes a falar de pessoas que vivem em condições difíceis, em países destruídos pela guerra e tudo o que pedem é a oportunidade de viver num lugar onde podem ter paz. Em Roma, alguns imóveis pertencentes ao Vaticano estavam vazios e ele ordenou que fossem arranjados e preparados para receber refugiados. O aspecto humano da religião mudou muito e a paz é, por isso, essencial. Às vezes as pessoas perguntam-me: “Por que é que o Cristianismo é necessário?”. Porque o Cristianismo ensina-nos que somos todos irmãos e irmãs. Os irmãos e as irmãs discutem, mas não se matam uns aos outros. Ou pelo menos tal não acontece todos os dias. Há um aspecto muito importante no qual o Papa tem vindo a trabalhar de forma muito discreta. Ele está a tentar tomar conta da casa comum onde vivemos: da água, da atmosfera, das condições de vida. Ele está a sublinhar algo de que até há pouco tempo quase ninguém falava, não obstante sermos responsáveis por isso: estamos a causar a destruição do mundo, a causar guerras e a forçar milhares de pessoas a abandonar os seus países.

CLA cidade de Nagasaki é vista como a capital do Catolicismo japonês. Que vitalidade tem ainda o Cristianismo no Sul do Japão?

P.R.I.– Bem, também vivi em Hiroshima durante alguns anos e a impressão com que fiquei é que em Nagasaki a sombra da bomba atómica não é sentida de forma tão profunda como em Hiroshima. É verdade que a Igreja local não apresenta grande renovação e que não há novos rostos, mas parece-me que, não obstante a destruição, as pessoas sempre olharam com esperança para o futuro. Essa pode ser uma das razões pelas quais optaram por não manter os destroços e as relíquias das igrejas destruídas. Em Hiroshima, as pessoas ainda estão ressentidas e tristes com o que aconteceu. No Seminário conheci um colega que morreu recentemente, o padre Tadashi Hasegawa. Acabou por fazer o seu percurso como padre diocesano, mas uma vez, numa das aulas de Teologia que tínhamos em conjunto com os seminaristas locais e que eram ensinadas em Latim, apercebi-me de uma coisa: algumas das disciplinas que eram leccionadas aos seminaristas japoneses – como História do Japão ou História da Igreja – eram ensinadas em Japonês. Éramos quase duzentos no Seminário, entre missionários estrangeiros e seminaristas nativos. Ele estava sentado na secretária ao meu lado, algures no início do mês de Junho, um dia bastante quente e estávamos a usar roupas mais leves, e reparei que ele tinha uma espécie de cicatriz branca e enorme no braço. Lembro-me de ter ficado muito intrigado com aquilo e depois da aula perguntei-lhe: «Desculpa, posso perguntar-te uma coisa? Tiveste algum acidente ou algo do género?»…

CLUma queimadura provocada pela radiação, certo? A bomba atómica…

P.R.I.– Sim, a radiação. Quando a bomba explodiu ele frequentava o Ensino Secundário, mas durante as férias de Verão trabalhava numa fábrica de armamento. Durante as primeiras horas daquele trágico 6 de Agosto as sirenes tocaram tantas vezes que as pessoas responsáveis pela usina decidiram que nesse dia a fábrica não ia operar. O dia estava quente e ele decidiu, por isso, ir banhar-se no rio. O rio em Hiroshima corre abaixo do nível das ruas. No momento em que estava a mergulhar, apenas com uma mão fora da água, a bomba atómica explodiu. Também ficou com queimaduras numa perna e em ambos os lados tinha cicatrizes quelóides. Recordo-me de lhe ter perguntado na altura: «Podes explicar-me do que se trata?». Ele disse apenas: «Bem, é uma memória triste». Algum tempo depois conduzimos entrevistas com os sobreviventes que estavam na área onde a bomba atómica foi largada e foi então que ele explicou o que se tinha passado. Disse que saiu da água, sentiu uma sensação estranha, perdeu a consciência e quando voltou a abrir os olhos viu pessoas e peixes mortos à tona da água. Só quando saiu do rio é que se apercebeu que a cidade tinha desaparecido. As casas tinham sido completamente destruídas. Sentiu que tinha sido alvo da Providência Divina. Muitas das pessoas que tentavam escapar ao fogo e ao calor dirigiram-se para o mar, onde não havia senão pessoas com queimaduras e água suja e contaminada. Viu um grupo procurar refúgio por detrás de uma colina e decidiu juntar-se a eles. E foi lá que encontrou o padre Arrupe com ajuda. A casa onde o padre Arrupe vivia – e onde eu também vivi dois anos – estava situada por detrás da colina e foi poupada à onda de calor. A onda de calor acabou por ser desviada, os vidros das janelas estilhaçaram, mas a casa permaneceu de pé. A capela tinha uma cobertura de tatami e então disse às pessoas para lá dormirem. A determinada altura dormiram ali duzentas pessoas. Por obra e graça da Providência, o padre Arrupe descobriu ainda que o azeite que utilizava para cozinhar servia para tratar as queimaduras causadas pela radiação e preparou uma espécie de pomadas com a qual cobriu as feridas para que não infeccionassem. Foi assim que salvou duzentas pessoas.

 

CL – O Padre Hasegawa foi uma delas…

P.R.I.– Um médico australiano que chegou a Hiroshima alguns dias após a explosão da bomba, quando viu Tadashi Hasegawa disse ao padre Arrupe: «Não há esperança para este rapaz. Os ferimentos dele são demasiado graves. Deixe-o morrer». O padre Arrupe disse-lhe: «Não». O rapaz acabou por recuperar. Esteve inconsciente durante vários períodos de tempo. E quando não estava o padre Arrupe dizia-lhe que ele não devia temer a morte, porque se morresse Deus certificar-se-ia de que se iria reunir com os seus amigos, até porque Deus também era seu amigo. Ele lembrou-se das palavras do padre Arrupe e quando recuperou foi ter com ele e disse-lhe: «Quero saber mais sobre este Deus que é meu amigo». Acabou por ingressar no Seminário e ao fim de alguns meses tomou uma resolução: «Quero tornar-me sacerdote para dizer às pessoas que a Providência Divina não quer mais guerras». E foi assim que ele se tornou não apenas católico mas enveredou também pelo caminho do Sacerdócio.

CLVive no Japão – como dizia – há mais de sessenta anos e com a sua vinda materializou-se também uma espécie de regresso de São Francisco Xavier ao País. O sangue que lhe corre nas veias é o mesmo que corria nas veias da família do “Apóstolo do Japão”. Que peso teve essa circunstância na decisão de se tornar missionário no Japão?

P.R.I.– É muito simples. As primeiras informações relativas ao Japão que chegaram ao conhecimento de Francisco Xavier foram disponibilizadas por um jovem chamado Anjiro. Também conhecido pelo nome de Paulo de Santa Fé, Anjiro era rápido a aprender. Aprendeu Português, tornou-se católico e convidou São Francisco Xavier a visitar o Japão. Anjiro disse-lhe que no Japão as pessoas tinham fome de Deus e estavam preparadas para receber a palavra de Cristo. Na altura não havia qualquer regra que fizesse do Budismo ou do Xintoísmo religiões oficiais. Havia liberdade. Viajou para o Japão para lá pregar os ensinamentos cristãos, ficou convencido que o Catolicismo podia ganhar raízes no Japão e foi então que escreveu aquela famosa carta ao seu amigo Simão Rodrigues, conselheiro do Rei de Portugal, em que lhe dizia: “Diz ao Rei de Espanha e ao Rei de Portugal que eles não têm direito a colonizar o Japão”. O Japão tem a sua própria cultura e a única coisa que lhe falta é o Cristianismo. Depois de ter passado dez anos na Índia, com todos aqueles deuses, costumes e religiões, foi revigorante para Francisco Xavier encontrar um lugar em que não havia religiões que permitissem que os homens casassem com três mulheres e outras coisas do género. O Japão prefigurou-se aos olhos de São Francisco Xavier como um país de grandes possibilidades. Quando escreveu aquela carta ao Rei de Portugal sentiu que estava a fazer a coisa certa. Foi também por causa do exemplo dele que eu me naturalizei japonês: para provar que não estamos no Japão para criar colónias de qualquer espécie. É uma clarificação importante.

Marco Carvalho, em Nagasaki

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *