A caminho da Tanzânia
Continuamos em Palma, no norte de Moçambique, já muito perto da fronteira com a Tanzânia. O jovial empreiteiro, que está acompanhado pelo seu filho Zaida, fala-me com entusiasmo das ilhas de Ibo e das Quirimbas, terra de «antigos aliados de Vasco da Gama», e apresenta-me a alguns dos trolhas que tem ao seu serviço e que são naturais dessas ilhas. Fala-me ainda do interesse manifestado por um conhecido empresário português nascido em Moçambique (pelos vistos, em palhas douradas) que lhe confessou que não se importaria nada de investir no turismo, mas só se fosse possível desembaraçar toda a região «dessas coisas» ali residentes. Por essas coisas entenda-se negros, os legítimos habitantes dos territórios que permitiram que famílias como as do dito empresário, e outras, amealhassem a riqueza que hoje exibem mas páginas das revistas de mexericos, numa enorme falta de respeito para com os que ganham a vida com o seu próprio suor.
Mussa faz questão de me mostrar a casa de um colono abandonada que tem no pátio em frente a um sucedâneo de abrigo antiaéreo. Não passa de um simples buraco de quatro metros por quatro com menos de um metro de profundidade coberto por uma placa de betão colada a um atrelado de carrinha. Enfim, um simples bunker improvisado com uma abertura para as pessoas se poderem enfiar lá dentro.
«– Houve por aqui muita guerra, o que é que você pensa! Ataques com forças do exército e até bombardeamentos, como o comprova este abrigo», diz o moçambicano.
Finda a breve visita, Mussa chama o filho e partimos os três rumo à fronteira.
«– Se calhar vamos ver elefantes», avisa enquanto, aos solavancos, o seu todo-o-terreno procura caminho pelo estradão de saibro e areia. Não avisto elefantes mas farto-me de ver as bostas que produzem, enormes amontoados de erva seca, pois é disso que se trata.
«– É desta forma que marcam o território», informa Mussa. Eu tento marcar o meu com algumas fotos que, lamentavelmente, assustam um grupo de crianças que tomam banho num riacho.
«– É normal. Se calhar nunca viram um branco», comenta ele.
Ao cabo de trinta minutos chegamos à povoação de Namiranga, ou, melhor dizendo, ao que resta dela: postes eléctricos desactivados e alguns edifícios abandonados. Apenas um ambulatório com um painel solar instalado no telhado parece estar habitado. Numa pequena rotunda mantém-se a base de cimento em forma de cruz de Cristo onde assenta um poste agora sem bandeira. Em frente, a algumas centenas de metros, não se vê mas adivinha-se o rio Rovuma, delimitador de fronteiras.
Se enveredássemos para a nossa direita, rumo à costa, depararíamos com o Cabo Delgado, local de muitos e conhecidos naufrágios, alguns deles bem documentados na História Trágico-Marítima, e também destino de peregrinação pois aí existe um túmulo de uma conhecida santa muçulmana. Nós viramos à esquerda e, galgando a picada, chegamos, vinte minutos depois, ao posto fiscal de Namoto, uma simples barraca de terra batida onde está escrito “Autoridade Tributária de Moçambique. Direcção Geral Nacional”. É aqui que um pachorrento e simpático polícia, conhecido do agora meu amigo Mussa, me coloca o carimbo de saída. Mas nada de fotografias, «por favor», talvez porque o posto não seja o exemplo da arquitectura que se pretende para um local com cunho oficial.
A TRAVESSIA DO ROVUMA
O Rovuma fica ainda a uns dez quilómetros. Já em terra de ninguém, tentamos um possível trilho mas acabamos atolados na lama, o que implica uma manobra própria para um veículo de tracção às quatro rodas como o que nos transporta. Dou-me conta então que a zona de travessia varia consoante a época do ano ou as condições meteorológicas. «– Costumávamos atravessar neste local», diz Mussa, que, com a preciosa ajuda de alguns pescadores que por ali andam consegue tirar o jipe do atoleiro onde está metido.
Fazemos mais uns quilómetros para sul e acabamos por deparar com uma palhota, um barco virado de cima para baixo e meia dúzia de indivíduos. Dois deles retiram umas varas longas e um amontoado de cordas que serviram para unir três botes movidos a motor, transformando-os assim numa espécie de jangada. Acabaram de transportar uma viatura para à outra margem do rio.
«– A mim é que não me convencem a fazer uma coisa dessas. Gosto do meu carro e ele custou-me muito dinheiro», comenta a propósito Mussa, abandonando logo ali a ideia de me acompanhar até Mtwara.
Algumas dezenas de quilómetros ainda mais a sul, está em fase adiantada de construção a futura Ponte da Amizade que porá fim a esta não necessariamente desagradável aventura. Diz-me Mussa que na época seca o Rovuma pode ser atravessado a vau, mas agora que abundam as águas e rareiam os viajantes o preço da passagem é aquele que o barqueiro quiser cobrar. Depois de apurada negociação desembolso trinta dólares por uma viagem de dez minutos. Trinta dólares adiantados, pois os meninos que se encarregam deste serviço não estão aqui pelos nossos bonitos olhos.
Despeço-me de Mussa e Zaida e apronto-me para lidar com sete homens que me encaram de um modo que pode ser considerado hostil, apesar de ser eu que indirectamente lhes estou a pagar a travessia para a margem oposta, onde o cenário é um pouco mais completo. Em vez de uma há várias palhotas, barcos, motociclos e uma carrinha, certamente à espera de novas vítimas. Mal ponho os pés em terra sou rodeado por dezenas de indivíduos e literalmente massacrado por diferentes propostas, todas elas exorbitantes dada a distância que é preciso percorrer até à fronteira propriamente dita. Há até quem esteja disposto a transportar-me de bicicleta, apesar da mochila que trago às costas ser mais pesada do que é habitual.
Face ao caos provocado por estes verdadeiros empecilhos, solto um berro de samurai e ponho-me a caminho, decidido a fazer a pé os seis quilómetros até à fronteira. Tudo menos continuar a ser sujeito ao assédio e à brutalidade que acabara de presenciar. A carrinha vem no meu encalço, muito devagar, e quando já não se avista mais ninguém no horizonte um dos seus ocupantes abre a porta de trás e concorda em levar-me gratuitamente até à fronteira tanzaniana, onde, ele e os colegas, muito pacientes, tais abutres à espera do estertor da presa, aguardam que eu resolva a questão da papelada. Sabem que não tenho alternativa e que, a não ser que decida pernoitar nesta desinteressante aldeia fronteiriça, serei obrigado a recorrer aos seus serviços.
PENSÕES AO DESBARATO
Os funcionários da imigração, muitos jovens, trajando à civil, mostram-se correctos, ao contrário dos da alfândega que nitidamente se fazem a uma oferta, seja ela qual for. Da minha parte, faço-me despercebido que é a melhor atitude a ter em situações destas. Armar-me em esperto seria um erro crasso, já que a faca e o queijo estão sempre na mão da autoridade.
Até Mtwara, a primeira povoação tanzaniana digna desse nome, são mais de quarenta quilómetros de terra batida, e eu vou ser obrigado uma vez mais a pagar o preço que me quiserem cobrar, acrescido, claro, do custo do visto tanzaniano, que é de cinquenta dólares, seja a estadia de um dia, duas semanas ou de um mês. E como é cá o branco que paga o condutor aproveita para fazer um périplo pela aldeia em busca de mais alguns passageiros, se bem que não sejam assim tantos os pretendentes a mais esta desagradável e poeirenta viagem de final de dia.
Abandono a ideia de chegar hoje a Quiloa. Que remédio! Posso até considerar uma sorte estar já neste lado da fronteira.
À entrada de Mtwara, uma lousa de xisto junto a um restaurante lembra o jogo do Manchester United com o Futebol Clube do Porto dessa noite. Se calhar ainda vai dar para ver, penso, antes de anotar no caderno de apontamentos o nome da operadora de telemóveis local, a “O Zain”, e a empresa viária “Southern Cock”, que escolheu o rosto de Barack Obama como logótipo. Aliás, a imagem do presidente norte-americano está um pouco por todo o lado. Também nunca vi país com tanta “guest-house” por metro quadrado! Há-as por todo o lado e mais ou menos com o mesmo nível de qualidade, o que facilita a tarefa de escolha de local de pernoite. Aquela onde decido ficar está ao lado de um outra que ardeu por completo.
Joaquim Magalhães de Castro