MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 35

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 35

O capitão Manuel D’Eremao e os descendentes de Juliana

Falávamos na edição passada da obra “Juliana Nama” que trouxe para a ribalta, no subcontinente indiano, a figura de Juliana Dias da Costa. De acordo com Pankaj Vohra, jornalista do Sunday Guardian Live, “este livro de valor inestimável” deveria ser lido por todos os estudantes de História indianos, e até para “o leitor ocasional” servirá de excelente introdução para perceber o “modus operandi” daquele país “há menos de três séculos”. Vohra convida “cineastas de todo o mundo” a inspirarem-se nessa obra para produzir um filme sobre a luso-indiana fazendo assim justiça “a tão enigmática heroína”, à semelhança do que aconteceu com Razia Sultana, Nur Jahan, Mumtaz Mahal ou Jahan Begum, todas elas destacadas figuras femininas do Norte da Índia. Vohra vai ainda mais longe ao lançar o repto a Shekhar Kapur (autor de uma trilogia sobre a rainha Elisabeth I) e ao hollywoodesco Sanjay Leela Bhansali, esperando que a história seduza também um qualquer “Cecil B. DeMille” da actualidade, já que os autores do “Juliana Nama” lograram transformar um longo e apurado trabalho de investigação “num sincero tratado histórico baseado em factos reais”.

Se a vida de Juliana Dias da Costa não passou ainda para o ecrã, não terá sido certamente por falta de predicados: para a nobreza mogol, era a pedagoga da descendência real, médica das damas do palácio, responsável pelos assuntos do harém e do tesouro real, empregadora, diplomata, advogada e até instrutora militar. Para os portugueses, além de tudo isso, Juliana acumulava as funções de patrona dos órfãos, digna benfeitora do Colégio e Missão Jesuíta de Agra e financiadora da missão papal ao Tibete liderada pelo padre Manuel Freire e à qual o seu confrade e subalterno Ippolito Desideri daria continuidade. Este, descreveu Juliana como “uma santa com poderes milagrosos”, afirmando que ela quase havia convertido o imperador mogol ao Cristianismo, o sonho final de todos os missionários presentes na Índia.

Dela se conta a seguinte estória: quando um incêndio eclodiu no palácio real, Juliana apagou as chamas com um galho de palmeira previamente benzido. A partir de então, Bahadur Shah manteve no seu quarto esse milagroso ramo. Consta que Juliana também convenceu o imperador mogol a isentar os padres cristãos da jizya, tributação anual cobrada a residentes não-muçulmanos a fim de financiar os gastos públicos, no fundo o equivalente ao zakat e ao khums, taxas que todo o muçulmano era obrigado a pagar. Desideri dizia que “Donna Giuliana Diaz da Costa” fora o “apoio e ornamento de nossa Santa Fé no Império”. Os atributos multilingues e a cortesia de Juliana estão bem presentes na recepção aos membros da delegação holandesa: aconselhou-os acerca do tipo de presentes que deveriam oferecer a Bahadur Shah, levou-os a passear pelos jardins do palácio e arranjou-lhes uma audiência com o rei. E para o dispor favoravelmente, a distinta senhora desafiou os nórdicos a darem um recital de música ocidental essa mesma noite. Um sucesso! Os temas interpretados ao som do violino, da harpa e do oboé deixaram extasiados Bahadur Shah e todo o séquito.

Juliana não só presentearia os mogóis com o lado mais refinado da cultura ocidental, como também lhes reforçaria os exércitos com armas e canhões de fabrico europeu, de resto, utilizados com sucesso na sangrenta batalha de sucessão entre Bahadur Shah e o irmão, Azam Shah, em Jajau, perto de Agra. Sem Juliana a seu lado e o poder de fogo da artilharia por diligência dela disponibilizado, Bahadur não teria saído vitorioso desse conflito. Um outro dado novo que nos traz o livro “Juliana Nama” é a educação jesuíta da lusa-indiana, a cargo do padre António de Magalhães que, segundo consta, lhe teria ensinado diversas línguas, entre outras disciplinas.

Pelos muitos serviços prestados na corte mogol ser-lhe-iam concedidos vastos terrenos, hoje inseridos no perímetro urbano de Nova Deli. Falamos dos distritos de Jamia, New Friends Colony, Okhla e Sarai Jullena, este último um terreno de 170 acres onde a devota dama construiu a hospedaria “Bibi Juliana ki Sarai”. Sob as suas ordens seria também erguida a igreja de Masihgarh, ainda hoje existente. Juliana, privilegiada residente do Lal Qila, “o Forte Vermelho”, visitava com frequência os seus domínios, de barco ou por via terrestre, sempre acompanhada da comitiva a que tinha direito.

De acordo com os registos mogóis, Juliana morreu em 1734, com cerca de 75 anos, e pouco tempo depois há notícia de uma certa família D’Eremao reivindicar descendência sua, até porque os seus membros eram, de facto, legítimos herdeiros das propriedades de Juliana. Segundo eles, o apelido D’Eremao derivaria do título Durr-i Yaman ou Durr-i Oman (Pérola do Iémen ou Pérola de Omã) conferido por Bahadur Shah aos seus antepassados, o que levanta aqui uma suspeita: será que a relação amorosa entre Juliana e Bahadur deu frutos? Serão os D’Eremao os seus descendentes? Seja como for, após o declínio dos mogóis, os D’Eremao, gente com formação militar, colocaram-se ao serviço dos maratas, e são hoje vários os ramos familiares espalhados pelo mundo. É o caso do cidadão britânico Beverly Hallam, procedente do capitão indo-português Manuel D’Eremao que deu nome ao histórico “D’Eremao Cemetery”, situado em Kishanganj, na zona velha de Deli, sob a alçada do Archaeological Survey of India desde 1919.

Segundo Rosie Llewellyn-Jones, editora do “Chowkidar”, publicação oficial da BACSA (Associação Britânica de Cemitérios do Sul da Ásia), citando Beverly Hallam, o “D’Eremao Cemetery” data de 1781, “altura em que o frade carmelita Gregorio della Presentazione, vindo de Bombaim, assume o comando da Missão Católica de Deli, anteriormente a cargo dos jesuítas”. Na verdade, naquele terreno assentava já o primeiro cemitério cristão de Deli – mencionado na década de 1760 pelo jesuíta Joseph Tiefenthaler – onde pelo menos desde 1600 foram sendo sepultados arménios (muitos conhecem-no como “Cemitério Arménio”, e há até uma lápide que o atesta), portugueses e outros europeus a soldo dos mogóis, mas que em grande parte fora destruído pelas tropas de Nadir Shah aquando a invasão persa de 1739.

Nascido em Deli por volta de 1744, Manuel D’Eremao, embora criado pelo avô materno Manuel Gascoine, deve a maior parte da riqueza a Dona Juliana Dias da Costa, a sua avó materna. Este luso-gaulês(?)-indiano serviria como oficial do exército Scindia (dinastia hindu marata) e esteve à frente do forte de Hansi até ser obrigado a entregá-lo às forças britânicas vitoriosas lideradas por Lord Lake, em 1803. Em troca, recebeu “uma generosa pensão e a confirmação das suas propriedades ancestrais em Deli”. Numa lápide mandada colocar no seu túmulo pelo filho Domingo D’Eremao podia-se ler a seguinte laudatória inscrição em Persa: “Capitão Manuel D’Eremao Bahadur, depois de 86 anos de uma vida marcada pela munificência e a caridade, deixou esta perecível pousada quatro horas após o pôr do sol de sexta-feira, 5 de Junho de 1829, correspondente a 2 de Zilhijj, 1244, Hijri, e mora agora para sempre no Paraíso, pois sempre seguiu os princípios da Fé cristã”. O triste evento causou “profunda consternação juntos dos seus familiares”, pois Manuel D’Eremao, “homem generoso e bom, morreu repentinamente”.

Infelizmente, esta e muitas outras lápides de mármore foram roubadas, ou simplesmente vandalizadas, na sequência dos distúrbios que se seguiram à Independência da Índia, e a partir da década de 1950 o local seria ocupado por famílias de desalojados, sobretudo famílias cristãs. Em Dezembro de 1947, na sequência de uma auditoria a todos os cemitérios europeus da recém nascido nação indiana, o brigadeiro Bullock constatou a destruição desse património realçando os “deliberados danos” causados no “grande mausoléu da família D’Eremao, que constitui a principal característica do cemitério”. Nas suas pesquisas, Beverly Hallam deparou com várias cartas do brigadeiro Bullock, com pedidos de indemnização, destinadas aos órgãos administrativos de Nova Deli que, como era expectável, cairiam em saco roto. Agora que a história dos D’Eremao é mais conhecida, a tetraneta do capitão Manuel aborda o Archaeological Survey of India e o INTACH (Fundo Nacional Indiano de Património Cultural e Artístico) de uma forma mais pragmática: solicitou o reconhecimento patrimonial do cemitério enquanto “peça única da história dos indiano-europeus”, exigindo, por isso, o devido respeito e protecção.

Joaquim Magalhães de Castro

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