Maria Amélia António, Advogada e Presidente da Casa de Portugal em Macau

«Há um espírito segregacionista em certas faixas sociais».

Voltada para a promoção da cultura portuguesa, a Casa de Portugal em Macau também presta um importante apoio social a determinados membros da comunidade que serve. A colaboração tem sido estreita com o Consulado Geral de Portugal, assume Maria Amélia António. A presidente da agremiação recusa o rótulo de “falta de união” que muitas vezes caracteriza os portugueses a viver no território. A’O CLARIM, a advogada disse estar assustada com a atitude de certas faixas sociais, dado que promovem um espírito segregacionista.

O CLARIMQuase vinte anos após o retorno de Macau à China, verifica-se que a comunidade portuguesa está bem integrada na RAEM. No entanto, há quem viva com dificuldades. A Casa de Portugal é muitas vezes chamada a intervir nessas situações. Mais do que promover a cultura portuguesa, estamos hoje perante uma instituição também voltada para a solidariedade social?

MARIA AMÉLIA ANTÓNIO – É chamada às vezes. São situações pontuais em que nos é pedida ajuda. E quando assim acontece tenta-se resolver, na medida do possível, ou encontrar alguma via para encaminhar as situações. Estas coisas são feitas com alguma descrição, porque quando normalmente as pessoas precisam de ajuda é quando estão mais fragilizadas, por isso não é altura de as pôr em evidência. A não ser que seja algo que ultrapasse a capacidade da Casa em ajudar. Aqui há que divulgar o caso, mas quando são situações que podem ser resolvidas sem as mostrarmos então actuamos com descrição. É a política da Casa.

CLSem o empenho da comunidade também o trabalho da Casa de Portugal não seria agora possível. Considera que os portugueses de Macau estão mais unidos?

M.A.A. – Não acho que seja uma questão de união ou desunião. Penso, sobretudo, que há um problema de reserva. Os portugueses têm uma grande tendência para se isolar, para fazer uma vida em grupo restrito. Em Portugal é a família. Em Macau serão os amigos mais próximos. Daí que não apareceram ao mesmo tempo nas coisas públicas ou que se juntem para as de grande visibilidade. Só muito esporadicamente é que isso acontece. Pode dar a ideia de não haver grande comunicação ou grande união, mas quando há qualquer assunto que interessa, qualquer problema, percebemos que as pessoas respondem. Não se pode dizer que é falta de união.

CLÉ pública a estreita relação entre a Casa de Portugal e o Consulado Geral de Portugal. De que forma essa cooperação poderá ainda ser mais intensificada?

M.A.A. – Tem havido uma colaboração estreita porque muitas vezes há questões que chegam até nós, mas não são da nossa competência resolvê-las, sendo muitas vezes preciso levá-las até ao Consulado e conjugar esforços. Mesmo do ponto vista cultural sabemos que o nosso Consulado tem muita vontade. O nosso cônsul [Vítor Sereno] é extremamente empenhado em tudo o que é possível fazer, mas o Consulado não dispõe de meios económicos para determinado tipo de realizações culturais. Tem-se conjugado a nossa vontade e os nossos meios com a vontade do cônsul para conseguirmos que algo se realize. Daí a ligação mais estreita entre a Casa e o Consulado, com o objectivo de servir melhor a comunidade.

CLPara além das questões culturais, a presidente da Casa de Portugal, agora na qualidade de advogada, tem sido uma defensora dos direitos, liberdades e garantias da população em geral. Sente que os poderes Executivo, Legislativo e Judicial caminham na direcção certa?

M.A.A. – É uma pergunta difícil. É muito difícil porque… Julgo que há vários campos que não têm, digamos, correspondido aos desejos e aspirações do que seria o seu desenvolvimento na vida do território. Na parte judicial houve atrasos, coisas que se deviam ter sido feitas atempadamente para não se criar situações estranhas…

CLComo por exemplo?

M.A.A. – A revisão da lei [de Bases] da Organização Judiciária, que considero que ficou logo inicialmente um pouco deficiente. E depois, o desenvolvimento da RAEM veio provar que era deficiente, sendo preciso criar outros mecanismos e alargar determinado tipo de magistraturas. Considero que continuar a querer manter-se o Tribunal de Última Instância com três juízes, ao fim destes anos todos, é um erro crasso. Não só pelos problemas que tem originado, com a falta de impossibilidade de recurso para determinados processos, mas porque também não permite a criação de uma jurisprudência mais debatida, mais variada. É algo que não enriquece a jurisprudência local. É mau porque o debate de ideias e da interpretação jurídica é muito importante para se chegar a leituras mais correctas, mais adequadas da legislação.

CLO que mais a preocupa?

M.A.A. – Do ponto de vista de Macau, se há algo que me preocupa particularmente são as transformações da sociedade que se têm sentido ao longo do tempo, e que se vêm agravando. São preocupantes.

CLEm que medida?

M.A.A. – Estou em Macau há trinta e cinco anos. Hoje oiço coisas que durante todos esses anos eram impensáveis ouvir. Há um espírito segregacionista em certas faixas sociais que se pronunciam e manifestam com muita falta de humanidade e respeito por pessoas que estão em Macau e que trabalham, que fazem parte da vida local e são fundamentais para a vida do território. Cada vez mais sente-se que há pessoas que as desprezam, que falam e emitem opiniões que são nitidamente segregacionistas. Já para não utilizar adjectivos mais fortes…

CLEstamos a retroceder no tempo?

M.A.A. – Macau não era assim. Macau tinha uma tradição humanista, de receber e ajudar. Macau começa hoje a ter uma voz pública agressiva, mesmo para as pessoas que são fundamentais para a economia, que estão a construir Macau com o seu empenho e o seu trabalho, o que não é compatível com a tradição deste território. Até porque, se olharmos com muita atenção, essas vozes e atitudes vêm de pessoas que não são de Macau, ou que não nasceram aqui. Se não foram elas [que não nasceram cá], foram os seus pais…

CLQuem são essas pessoas?

M.A.A. – São imigrantes da China continental que vieram para aqui fazer a sua vida; procurar também melhor a sua situação económica. E hoje assumem posições extremamente agressivas para outras pessoas que vieram ao mesmo tempo, ou se calhar até antes, sejam elas chineses ou não. A descaracterização de Macau passa por aqui. Não é só um problema cultural – o dizer se as tradições culturais são ou não respeitadas – porque não se respeitam princípios fundamentais da sociedade de Macau como a conheci. Tudo isto faz-me muita impressão e assusta-me imenso.

PEDRO DANIEL OLIVEIRA

pedrodanielhk@hotmail.com

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