«As Misericórdias na China desapareceram, mas a semente permanece lá»
A organização, em Macau, do Congresso Internacional das Misericórdias foi uma oportunidade de ouro para mostrar à República Popular da China que a rede mundial das obras de Misericórdia pode dotar a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” de uma cada vez mais necessária faceta social e solidária. A posição é defendida por Manuel de Lemos. Em entrevista a’O CLARIM, o presidente da Confederação Internacional das Misericórdias assume o desejo de estender a acção das Misericórdias à China e mostra-se convicto que a Santa Casa da Misericórdia de Macau vai continuar a ter um importante papel a desempenhar no território.
O CLARIM– Este congresso, que se realizou pela primeira vez em Macau, pautou um quase regresso ao continente asiático. Tratou-se de uma iniciativa com um capital simbólico muito grande…
MANUEL DE LEMOS– Para nós isso é fundamental. A Confederação Internacional das Misericórdias desde cedo olhou com interesse para o repto lançado pela Santa Casa da Misericórdia de Macau, de aqui organizar um congresso. Essa questão colocou-se com grande acuidade. Era para nós importante vir à Ásia, no tal regresso de que falava e bem. Por vezes as ocasiões surgem de forma impensada; o mundo é feito de encontros e esta circunstância de o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, ter lançado a nova Rota da Seda – e até ter dito que a Rota Marítima e a Rota da Seda se encontrariam em Lisboa – levou-nos a pensar que, se calhar, também caberia aqui, à Santa Casa de Macau, de alguma maneira, ser o promotor do trabalho das Misericórdias junto das entidades governamentais. Neste momento, à volta do mundo, há quatro mil e 500 Misericórdias e elas estão completamente disponíveis para trabalhar e eventualmente até para ajudar a refundar algumas.
CL– Acredita que essa refundação é possível?
M.L.– Perfeitamente. Tive a oportunidade de ouvir o Chefe do Executivo interino [o secretário para a Economia e Finanças, Lionel Leong] dizer que o Estado precisa de instituições deste tipo. Nós, as Misericórdias, temos uma vantagem sobre todos os outros: somos credíveis, somos rigorosas, temos experiência, temos uma história, temos uma missão e acreditamos que temos um futuro grande. Temos de fazer as coisas com elegância, bem feitas, muito assentes num diálogo inter-religioso, até porque não nos movimentamos apenas no domínio do Catolicismo. Já temos algumas Misericórdias no mundo onde isso é muito evidente, nomeadamente em África, onde temos um espaço de diálogo grande entre as comunidades de diversas origens, até religiosas. O que nos liga é a fraternidade e essa não tem cor, não tem raça, não tem credo. Está no espírito de cada um e na forma como agimos. Estamos convictos que, com a estrutura da Confederação Internacional por detrás, podemos transmitir este ideal de fraternidade a cada Misericórdia. Continuamos a fundar Misericórdias em Portugal. No Brasil continuam a fundar-se Santas Casas, expressão que é lá utilizada com maior frequência. Fundámos recentemente três Misericórdias em Angola. Esse percurso de chamar as comunidades – que, de outra maneira, estariam um bocadinho perdidas e que à sombra da família das Misericórdias se encontram bem – creio que é importante desenvolvê-lo também aqui na Ásia.
CL– Na China também? A Santa Casa da Misericórdia pode ser uma espécie de posto avançado para a República Popular da China?
M.L.– Era o que nós gostávamos que fosse. Sabemos que houve várias Misericórdias na China, não só a de Macau. O tempo e a história encarregou-se de as fazer desaparecer, mas a semente permanece lá. No início da semana assinámos um protocolo com uma comunidade que é uma, digamos, uma associação filantrópica na China. Porque não transformá-la numa Misericórdia? O espírito da fraternidade, o espírito da cooperação entre os homens, a consciência de que os Estados não podem fazer tudo – e não conseguem fazer tudo – é algo sempre presente no trabalho que desenvolvemos. Temos de libertar a sociedade civil, que tem motivação, que tem disponibilidade. Temos de chamar os jovens para essa missão.
CL– Esta ideia das Misericórdias se constituírem como o braço social do projecto “Uma Faixa, Uma Rota” é uma ambição centrada na República Popular da China? Ou também nas outras regiões abarcadas pela iniciativa?
M.L.– Não, para todos! Para todos! Embora globalmente o mundo tenha mudado, há ainda muitos casos de injustiça, de desigualdade. Isto é algo comum a todas as sociedades. No momento em que a China diz: “Nós vamos investir num conjunto de infra-estruturas para ajudar a desenvolver o tal caminho, para ajudar a alcançar o desenvolvimento social”, uma tal missão vai tornar necessárias instituições que estejam no terreno e ajudem. Quem são as instituições que, por natureza, estão no terreno sempre disponíveis para ajudar? Acreditamos que podem muito bem ser as Misericórdias.
CL– Dizia há pouco que os Estados não têm capacidade para fazer tudo… Quais são os desafios que se colocam às Misericórdias? O envelhecimento demográfico é um dos mais prementes?
M.L.– Sim, esse é o nosso maior desafio. É o nosso maior desafio a vários títulos. Vivemos numa região do globo – a Europa – em que o envelhecimento é mesmo o maior problema. A Europa no seu conjunto está cada vez mais velha. Portugal, dentro dessa Europa, apresenta um problema específico porque está nos três países que mais envelhecem e é dos três o que envelhece mais depressa. É um campeonato que não gostávamos de ganhar, mas infelizmente é essa a realidade, o que fez com que as Misericórdias se especializassem muito, muito, mas mesmo muito na questão do envelhecimento. Fazer com que os idosos tenham presente, com que os idosos tenham qualidade de vida, tenham dignidade de vida, é essencial. Estamos numa fase de mudança em Portugal. A nossa experiência é que os lares que existiam há vinte e há dez anos transformaram-se. Hoje as pessoas só querem ir para os lares à última. Os lares estão a transformar-se naquilo a que chamamos unidades de cuidados continuados. Estamos a aproveitar as novas tecnologias para centrar o apoio no domicílio, porque as pessoas gostam de ficar nas suas casas pelo maior tempo possível. Pensamos que esta experiência que Portugal tem tido e que o Brasil começa a aplicar, pode ser útil. Temos a ideia que o Brasil é um país muito jovem. É verdade que tem muitas crianças, mas também já tem muitos idosos. Estamos a desenvolver no Brasil a nossa rede de cuidados continuados e neste momento estão muitos brasileiros em Portugal a estudar a rede da União das Misericórdias Portuguesas para replicar no Brasil, adaptando-a. Durante muitos anos demos anos à vida. Agora temos que dar vida aos anos e, nesse sentido, penso que a nossa experiência pode ser muito interessante aqui no Oriente, onde o problema do envelhecimento também é significativo.
CL– A Santa Casa da Misericórdia de Macau festeja 450 anos Uma efeméride quase improvável, num território dado também a improbabilidades. A organização deste congresso na RAEM é também um atestado ao futuro da Santa Casa em Macau. Acredita que será possível celebrar os 500 anos da instituição daqui a meio século?
M.L.– Não podemos por limites à vontade de Deus, como se diz em Portugal. Acho que sim. Se formos inteligentes, se formos correctos, se tivermos esta postura de rigor e de qualidade, já ultrapassamos o momento mais difícil. O vento sopra a nosso favor. O vento sopra a favor de instituições credíveis, de instituições que têm uma história, de instituições nas quais os Governos e as pessoas confiam. Para lhe dar a realidade do meu país, não se explica a um português o que é uma Misericórdia. Ele é capaz de não a saber definir muito bem, mas ele sabe que ela está lá e no momento em que precisa – para ele, para o pai, para o filho, se há um problema – ele sabe bater à porta da Misericórdia. Em Macau, de alguma maneira isso também aconteceu e é algo que continua a ser feito, porque de outro modo não durava 450 anos e tinha sido arrumada no baú da história. Se está cá é porque é necessária.
Marco Carvalho