Baçaim e Goa, pérolas de uma Índia portuguesa
A propósito da recente passagem de mais um aniversário da chegada de Vasco da Gama à Índia e do longo caminho ainda a percorrer para que este país e Portugal potencializam o que de comum têm, recordo o insólito caso de um jovem indiano de 22 anos que, aqui há uns anos, durante cinco dias esteve retido no aeroporto de Lisboa por ordem dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras. O motivo da detenção residia no passaporte de que era portador, o que levantou suspeitas junto das autoridades portuguesas que o acusaram de falsificação de identidade. O problema só viria a ser resolvido depois de emitido novo passaporte pela embaixada indiana em Lisboa. Entretanto, o homem passara por uma série de vexames e ficara privado de liberdade durante cinco dias, já para não mencionar o facto de toda a sua bagagem ter sido reenviada para Nova Deli. Falta acrescentar que o jovem em questão, embora cidadão indiano, era filho de pai português. Ora pois, mais um daqueles casos de lusa autofagia que tão bem conhecemos. Com melindres deste calibre não admira que haja gente a recusar assumir as suas raízes lusitanas.
A GOA DOURADA
Como um dia escreveu o insigne historiador Jaime Cortesão “a rapidez fulgurante dos nossos êxitos nesta parte do mundo [Ásia] não se compreende sem considerarmos que ela estava ocupada por povos de civilização avançadíssima e que me muitos dos seus primores não cedia o passo à dos ocidentais”. Ademais, navegar na Índia era bem mais fácil do que no Atlântico. Para já, o número de escalas que a própria configuração geográfica, de golfos e várias e bacias proporcionava. Com um rosário de postos onde se podiam socorrer – Sofala, Quíloa, Mombaça, Melinde e Mogadixo – foi muito menos complicado encetar uma aventura como a que veio a acontecer. E antes de chegar ao Corno de África troca de atravessar em linha quase recta até à Índia, evitando assim a zona do Golfo Pérsico fortemente patrulhado pelos turcos. E isso foi antes de Albuquerque decidir avançar para a conquista de Ormuz que permitiu a circulação livre.
Construída no reinado de Dom Sebastião, a Catedral de Goa impressiona pela sua dimensão. Se nos obrigam a puxar a cabeça para trás os 36 metros da sua fachada clássica, o que dizer do seu interior com 76 metros de comprimento e 55 de largura? Ou ainda as poucos comuns (em construções do género) altura e largura da nave central deste templo que contém autênticos tesouros em forma de retábulos de talha, estátuas e pinturas, todos eles de clara influência ocidental? A quem não se dê por satisfeito, acrescente-se ao mencionado toda a exuberância e cor dos ornatos que compõem a Capela do Santíssimo Sacramento.
Estes elementos traduzem bem a imponência daquela que, desde 1510, foi capital do Império Português do Oriente, a Goa Dourada como lhe chamavam na época do seu apogeu. Foi através de Goa que o mundo ocidental se fundiu com a milenar civilização indiana, num cadinho de casamentos inter-raciais e alianças políticas que criaram laços que ainda hoje se mantêm fortes.
Em Goa foi introduzida a primeira impressora e com ela se preparam os livros que iriam fazer dessa cidade o polo do Cristianismo em todo o continente asiático. Pode dizer-se que a Sé Catedral, datada de 1562, em pleno auge económico-social e artístico, revela bem uma vontade de impressionar os naturais com “a riqueza, poder e fama dos portugueses que dominavam os mares desde o Atlântico até ao Pacífico”.
A Companhia de Jesus foi, de longe, a mais importante congregação religiosa na Ásia. E Goa era, por assim dizer, a sua principal sede. Por lá passavam todos os membros dessa comunidade destinados a pregar nos mais remotos e inóspitos recantos do continente asiático. Como acertadamente escreve Jaime Cortesão, “os jesuítas, mais que todos os outros, davam a Goa o seu carácter de metrópole missionária. Na Casa dos Catecúmenos, catequizavam-se e ensinavam-se os indígenas adultos; e no vastíssimo Colégio de S. Paulo recebiam ensino gratuito 2000 crianças”.
Uma das principais preocupações dessa ordem religiosa era o saber, daí que tivessem fundado a primeira universidade da Ásia, mais propriamente em Macau.
A Basílica do Bom Jesus, conhecida como “Taj Mahal de Goa”, tal é a sua grandiosidade, exemplifica bem o tipo de edifícios religiosos que em Goa se edificaram. O viajante francês Pyrard de Laval salienta que o “número de igrejas é tão maravilhoso, que não há praça, rua, encruzilhada, que não possua alguma”. Para ele a quem mais o impressionava era o rival do Bom Jesus, o Convento de São Francisco, que ele considerava “o mais belo e rico de mundo”.
Outros havia de muito maior dimensão que não sobreviveram à campanha de destruição que se seguiu ao decreto do Marquês de Pombal que extingui as ordens religiosas. Os mais magníficos exemplares da arquitectura religiosa foram simplesmente abatidos.
Construído em 1585, em local privilegiado, bem no centro da cidade, o Convento do Bom Jesus provavelmente escapou à razia pelo facto de albergar no seu interior o túmulo de São Francisco Xavier. Rivais dos jesuítas, os franciscanos opuseram-se ferozmente a que o convento fosse construído. Nisso de rivalidades, franciscanos e jesuítas batiam-se aos pontos.
No sector leigo, o edifício onde viviam os religiosos, a chamada Casa Professa, tem três andares.
Inúmeros altares de talha, pinturas e objectos litúrgicos em prata. No retábulo-mor, finais do século XVII, é uma alegoria a Santo Inácio de Loyola, o padroeiro da congregação.
A Capela de São Francisco, concluída em 1569, contém um caixa prateada (obra de artistas goeses), cravejada de pedras preciosas onde está o corpo incorrupto do santo, que é alvo de extrema veneração em toda Ásia. No interior da capela há pinturas alusivas à vida do santo.
A CIDADE E O FORTE
Geograficamente situada a setenta quilómetros da cidade de Bombaim, Baçaim é hoje um local invadido pelo mato, mas foi já uma das mais importantes praças-fortes da Índia, chegando mesmo a rivalizar com Goa. Antes dos portugueses a ocuparem, em 1535, era já um baluarte fortificado, mas não o suficiente para impedir que minas e outros engenhos de artilharia abrissem brechas na sua muralha. Recorde-se, a propósito, o episódio dos infiltrados artilheiros gregos, pagos pela Senhoria de Veneza, que se passariam para o lado dos turcos e ajudaram-nos no cerco frustrado que impuseram à cidade de Diu. Desde muito cedo instalaram-se na cidade todas as ordens religiosas com funções proselitistas no Oriente, e os edifícios que perduram traduzem bem essa passagem. É o caso dos conventos de São Domingos (fundado em 1552) e de Santo António, ambos em relativo estado de boa conservação; mas também o do Convento de Santo Agostinho e da Igreja da Companhia de Jesus (concluída em 1564). Esta última, é caracterizada por uma torre bastante alta que sobressai entre a restante estrutura, parecendo despontar de entre a densa vegetação que ali cresce espontaneamente.
A Misericórdia, a igreja paroquial de São José (construída durante o vice reinado de D. João de Castro, um dos melhores governantes que o Estado da Índia teve) e ainda a Igreja de Nossa Senhora da Vida, são outros edifícios religiosos de relevo. O que resta da Casa da Câmara, símbolo do poder local, assemelha-se aos edifícios com a mesma função ainda hoje existentes na Península Ibérica. Era um edifício de dois andares, com piso térreo e arcos em cantaria. No que se refere à malha urbanística propriamente dita, um olhar mais atento – e não precisa de ser o olhar de um entendido – apercebe-se do traçado dos arruamentos e da praça do município, espaço público de eleição que, à semelhança das vilas e cidades de província em Portugal, situava-se nas imediações da Casa da Câmara (ou Senado). A robustez dos seus dez baluartes poligonais, ligados por “robustas cortinas com escarpas interiores e exteriores encimados por largos parapeitos com abertas e canhoeiras, banquetas e passeios de ronda” – sendo de salientar, pela sua particularidade e distanciamento, a Porta do Mar – explicam que as obras se tenham prolongado ao longo de três décadas, provocando o descontentamento da população, que por diversas vezes se manifestou a esse respeito. Em toda sua estrutura é de salientar a Porta do Mar. Edificada a alguma distância do mar, Baçaim só voltaria às mãos dos maratas, seus legítimos senhores e nossos rivais, em 1739.
Joaquim Magalhães de Castro