A Quaresma no Ano da Misericórdia
Na Bula Misericordiae Vultus (MV), com a qual o Santo Padre proclamou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, cujo início ocorreu solenemente a 8 de Dezembro de 2015, são dadas algumas definições do que é a misericórdia.
O Papa Francisco afirma que a «misericórdia é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia é o acto último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado» (MV, n.º 2). É neste horizonte, a partir do qual vislumbramos o verdadeiro sentido da misericórdia, que celebraremos a Quaresma.
O tempo quaresmal não pode ser apenas um tempo de preparação da Ressurreição, ou, no limite da banalização, simplesmente uma época que antecede a festa da Páscoa. Pelas suas particularidades, a Quaresma é um tempo próprio e verdadeiro de iniciação sacramental, de modo muito concreto, caminho baptismal (sacramento por excelência da Páscoa) e penitencial. Matias Auge, sacerdote espanhol e professor de Liturgia, defende a existência de uma tripla dimensão da Quaresma. Indubitavelmente, numa primeira dimensão, encontramos este tempo de preparação e introdução geral ao Mistério Pascal. Segue-se a dimensão sacramental, de carácter baptismal, e por fim, sem perder a sua importância, a dimensão de tensão ética e de conversão.
A liturgia, como continuação da História da Salvação, torna efectivo em cada momento celebrativo o encontro misericordioso de Deus com a humanidade. No tempo da Quaresma, através dos três ciclos de leituras, tem presente esta tripla dimensão quaresmal, propondo os textos de índole baptismal e penitencial.
A dimensão penitencial como o primeiro passo do percurso que nos reconduz ao encontro do Pai Misericordioso, evidente naquele erguer-se do Filho Pródigo, que assim pode retomar o caminho de regresso a casa (cf. Lc 15, 18). É o erguer-se de quem reconhece o seu estado de “homem caído”, a que o pecado reduz; é o levantar-se de todo aquele que deseja encetar o caminho da reconciliação com Deus. O verdadeiro Deus misericordioso capaz de nos “abraçar” e “fazer festa”, porque um dos seus filhos estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado (cf. Lc 15, 24). Nesta peregrinação, a Palavra de Deus surge como sistema de posicionamento global (global positioning system, GPS), que nos possibilita reconhecer o nosso estado, permite que nos ergamos e contém o mapa de regresso a Casa do Pai.
A Quaresma, através das leituras litúrgicas propostas pelo Ano C, torna-se como que uma admirável catequese sobre a reconciliação. Uma instrução que na hora da cruz encontrará o seu vértice, na medida em que a Páscoa é o acontecimento supremo da nossa reconciliação com o Pai, como afirma Matias Auge. Deve pois ser um tempo propício à reconciliação, como desejava o Papa: «Ponhamos novamente no centro o sacramento da Reconciliação, porque permite tocar sensivelmente a grandeza da misericórdia» (MV, n.º I7). Neste sentido, uma das iniciativas deste Ano Santo serão as “24 horas para o Senhor”, entre os dias 4 e 5 de Março, onde se fará uma celebração de uma liturgia penitencial na Basílica de São Pedro. Além disso, durante a Quaresma, serão enviados Missionários da Misericórdia, um «sinal da solicitude materna da Igreja pelo povo de Deus, para que entre em profundidade na riqueza deste mistério tão fundamental para a fé» (MV, n.º 18).
Retomando a essência do sacramento da Reconciliação, tendo como pano de fundo o verdadeiro sentido da misericórdia, podemos afirmar que a cruz é o lugar da misericórdia. Na hora da cruz está presente toda a Trindade, naquela hora em que Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, encontra a salvação de Deus para toda a humanidade, abrindo-nos definitivamente as portas da verdadeira vida. Deste modo, a cruz é o caminho da misericórdia que somos convidados a trilhar.
A cruz, enquanto caminho para vida, é a grande proposta do Cristianismo, e de forma muito especial imposta durante a Quaresma. Paradigma para todo o cristão, a cruz torna-se o símbolo mais eloquente daquele que, com Cristo, percorre os caminhos da salvação (via-sacra). A cruz, onde Cristo morreu de amor pela humanidade, é este sinal singular da Quaresma, que a torna «um tempo privilegiado no qual a Igreja é chamada a mostrar de forma mais evidente o rosto misericordioso do Pai» (“Celebrar a Misericórdia”, PAULUS Editora). Neste ano de graça em que a Porta Santa adquire um significado espiritual pela sua alusão a Cristo, que Se define como Porta, através da qual a humanidade se salva (cf. Jo 10, 9), poderemos afirmar que a cruz, assumida de forma especial no tempo da Quaresma, e a chave desta Porta. «Se alguém quer seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me» (Mt 16, 24).
Permita Deus, como é vontade do Papa, que «a Quaresma deste Ano Jubilar seja vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus» (MV, n.º 17).
Um Deus misericordioso que, em Cristo, morre de amor na cruz por nós.
Pe. José Ferreira, SSP