Legado da Vila de Olhão da Restauração

A saga dos “algarvenses”

Um decisivo acto de resistência ocorreu nessa localidade algarvia a 16 de Junho de 1808, tendo como protagonistas um grupo de pescadores cansados das proibições e das pesadas taxas exigidas pelo invasor francês. Um desabafo da altura, insinuado por alguém no adro da igreja matriz, de que «já não há portugueses como os de outrora» acendeu o rastilho que cedo pôs todo o Algarve em polvorosa, sucedendo-se as rebeliões contra os destacamentos locais de Junot, o responsável pela dissolução do exército luso e pelos crimes que traumatizaram o País de norte a sul. Em breve as forças francesas fugiam para norte da serra do Caldeirão…

Orgulhosos, dezoito “algarvenses” – assim os classificaram alguns jornais da época – armaram as velas de um caíque (para uns o antecessor da caravela, para outros o resultado desta) e embrenharam-se Atlântico dentro, dispostos a ir informar pessoalmente o exilado D. João VI de que havia uma luz ao fundo do país vilipendiado. O invasor, afinal, tinha telhados de vidro.

Foi atribulada a viagem, que teve escala no Funchal, onde se juntou novo tripulante. Sem instrumentos de navegação e com apenas uma carta de grande escala, essa embarcação de pesca de dezoito metros de comprimento, apropriadamente baptizada Bom Sucesso, foi sendo levada pelos ventos gerais e pelas correntes, para sul e oeste, até à costa da América do Sul, numa distância de mais de cinco mil milhas. A Guiana, colónia francesa, foi o primeiro território avistado. «Os pescadores viram-se, por isso, obrigados a progredir ainda mais para sul, contra a corrente e com ventos adversos, certamente com longos períodos vencidos a remo», salienta Luís Oliveira Nobre, homem com muitos anos de vida no mar e descendente de um desses aventureiros.

A 22 de Setembro de 1808 os “algarvenses” deram entrada no Rio de Janeiro. Foram recebidos com grande admiração, e, como sinal de apreço, D. João (na altura, ainda príncipe regente) comprou-lhes o caíque «por seis mil cruzados». Seguir-se-iam os títulos e as condecorações. O piloto, Oliveira Nobre, foi nomeado «capitão do porto de Olhão» e diversas outras funções autárquicas, postos na Marinha de Guerra e uma tença anual assim como o hábito da Ordem de Cristo foram atribuídas aos homens do Bom Sucesso. Mas o que eles mais apreciaram foi as suas embarcações ficarem isentas do imposto de pescado.

A aldeia que os viu nascer passou a ser designada “Vila de Olhão da Restauração”, onde ainda hoje membros das famílias Charrão, Gémeo, Palma, Ò Borrego, Ò Lopes, Sousa, Lourenço, Moinho, Ribeiro, Cruz, Pires e Ninil guardam relíquias desses tempos, tais como «espadins e medalhas oferecidas pelo príncipe regente e pergaminhos amarelecidos pelo tempo».

Centenas ou mesmo milhares de olhanenses vão buscar as suas raízes aos bravos “algarvenses”.

O almirante na reforma Henrique da Fonseca é um deles. Começou por ouvir algo em casa a esse respeito, mas só após uma consulta ao site de uma associação cultural da cidade soube que o tripulante Joaquim Ribeiro era seu «avô em sexta geração». Não lhe legou apelido, o seu antepassado, mas o «vício» do mar, esse, ficou-lhe impregnado nos genes. Daí ter escolhido a profissão que escolheu e optou por continuar profundamente empenhado num já antigo projecto de recriação da histórica viagem do Bom Sucesso, «200 anos depois», tendo para isso, os seus protagonistas, de recorrer a uma embarcação similar, «com alguns ajustes tecnológicos que permitiam uma navegação mais segura».

Falamos de tudo isto no terreiro do Paço, onde desembocam milhares de estrangeiros por dia que ficam meio perdidos, um pouco sem saber o que fazer, pois nada há ali – uma placa, um panfleto, o que quer seja, que os elucide sobre a epopeia dos Descobrimentos e a sua importância na transformação do mundo.

O projecto Bom Sucesso conta com o apoio da municipalidade de Olhão, proprietária da réplica do afamado caíque oitocentista. Apoio moral existe. Pessoas disponíveis e capazes – «o comandante Castro Centeno, com experiência de navegação com vela latina, pois comandou a caravela Boa Esperança, oferece-se para levar o barco a bom porto» – também as há. Falta agora, recorrendo à metáfora do almirante, «daquilo com que se compram os melões».

Sempre intrigou o nosso almirante o destino do Bom Sucesso. Sabe que ficou varado no Arsenal do Rio de Janeiro, «na ilha das Cobras», havendo referências a seu respeito pelo menos até 1840. Por isso, escreveu recentemente à Marinha brasileira procurando saber do actual paradeiro do caíque, mas ainda não obteve qualquer resposta. «Provavelmente apodreceu», conclui.

Fechamos – por sugestão do nosso entrevistado – com um extracto de um poema épico, muito ao jeito de Camões, que José Agostinho de Macedo, padre e escritor da época, dedicou à saga do Bom Sucesso. Os versos de “O novo Argonauta”, algo exagerados mas de que Olhão muito se orgulha, rezam assim: “Talvez ignore o frígido Tamisa/ E o Sena transformado em sangue e luto/ Que o Atlântico mar banhe a pequena/ E mal sabida Olhão: é esta a pátria/ Do novo herói, do vencedor dos mares/ Com as frágeis armas dum batel pequeno/ Cuja façanha audaz deixa esquecidos/ De Américo, e Colombo o nome, e os feitos.”

Joaquim Magalhães de Castro

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