Elefantes, o Príncipe Vermelho e os farangs
Banhada pelo rio Mekong, às portas da floresta e com os seus pagodes coroados com tectos de ouro, Luang Prabang era uma das mais belas e pacatas cidades da Indochina. Pavimentadas com tijolos e ladeadas por graciosas casas particulares, as ruelas, que desembocam em eiras, hortas e campos de arroz, traziam ao grande burgo uma tranquilizadora paz campestre. Outrora quartel-general de uma monarquia que dominaria as restantes, anulando-as, Luang Prabang passou a capital de um país que os franceses baptizaram, em 1949, como Laos (plural de lao), precisamente para abranger sob a mesma designação os diferentes reinos.
As crónicas dessa época referiam ainda os “elefantes reais” que cruzavam os caminhos e as “mulheres de ousados penteados”, mas já séculos antes Fernão Mendes Pinto salientara os atributos das mulheres laosianas, dizendo que eram “muito alvas e muito fermosas, mas o que lhes dá maior lustro é serem bem inclinadas, castas, caridosas e maviosas”. Um lustro ainda bem visível nas laosianas de hoje, belas e presentes, como sempre. Já em relação aos elefantes passava-se exactamente o contrário. Para observar de perto um era preciso ter muita sorte, ou então embrenhar-se na selva mais densa, onde se escondem, e fazer visitas às aldeias que criavam os paquidermes como animais domésticos. Era mais fácil ver um desses bichos nas ruas congestionadas de Banguecoque (mesmo que se tratasse de elefantes destinados ao universo circense) do que nas colinas e margens dos rios do Laos. Creio que chegara a altura de alterar a máxima. Como se estava longe do ambiente retratado nos postais antigos em escaparates nas lojas de artesanato ou nas estantes dos museus, que nos mostravam filas de paquidermes, precedidos de homens com guarda-sóis, em parada pela rua principal de Luang Prabang.
GOLPES PALACIANOS
O reinado de Sisavang Vong, a autoridade máxima da altura, marcaria o último apogeu da actual capital do norte, tendo o seu filho, Savang Vatthana – o último dos soberanos laosianos – sido acusado de ser “demasiado francês”. O certo é que a ele se deveu a preservação dos templos da cidade e que levava uma vida quase de asceta. Todas as manhãs Savang inspeccionava o estado das construções e o palácio onde residia – um simples pavilhão de madeira no meio de um parque – era o oposto do fausto e do luxo.
Seriam os seus familiares mais chegados que o levariam, primeiro, ao cárcere e, depois, à morte. Souphanouvong, um meio-irmão, aliou-se aos vietnamitas, o que lhe valeu a alcunha de “príncipe vermelho”; e outro seu meio-irmão, mais velho, Somdeth Phetsarath, viria a fundar o movimento independentista Lao Issara. Nessa época os crachás mais vendidos em Luang Prabang representavam-no de boné militar na cabeça e sorriso amargo no rosto. Inteligente, nacionalista e fervoroso budista, Somdeth Phetsarath optou por não servir o poder colonial francês. Depois de lhe ter sido negada a sucessão ao trono retirou-se para um mosteiro. Viria a morrer – ou, como os próprios laosianos preferem dizer, a “extinguir-se voluntariamente, fazendo sair o espírito do corpo que o alojava” – pouco tempo depois. A maioria da população considerava-o um santo e havia quem manifestasse o desejo de lhe erguer um templo. Os fiéis de Phetsarath juravam a pés juntos que os distintivos com a sua figura ajudavam a afastar os maus espíritos. Curiosamente, esses artefactos eram fabricados no outro lado da fronteira, na Tailândia, pelos seus “irmãos” residentes no país vizinho.
Já nas páginas da “Peregrinação” de Mendes Pinto nos deparamos com vários relatos da constante guerra civil e dos variados crimes fratricidas praticados em nome do poder, uma tradição que, pelos vistos, vem de longe. O título de um dos seus capítulos – “do mais que o rei do Sião fez até voltar para o seu reino, onde a rainha sua mulher o matou com peçonha” – é bem exemplificativo do estado das coisas nessa altura. Embora não esteja provado que a Timpló descrita na “Peregrinação” seja Luang Prabang, a verdade é que as semelhanças são muitas.
O EFEITO DA COLECTIVAÇÃO
Com a chegada dos comunistas ao poder, em 1975, o peculiar processo de “libertação” da cidade de Luang Prabang, símbolo e alicerce da monarquia, obrigou grande parte da sua população a partir para o exílio e as casas confiscadas seriam entregues aos camponeses – 60 por cento da população actual é de origem tribal. Há registos de uma senhora Phu, de ascendência nobre, por exemplo, ter-se batido com estamina para guardar a casa dos seus antepassados e ter conseguido. Recorreu a todos o argumentos, inclusive colocar-se à entrada em frente um retrato do seu pai.
Os tempos agora eram outros. Pela primeira vez após a libertação, a dança que retrata o épico Ramayana – tradicionalmente instituída pelo rei – figurava no calendário oficial das festas de ano novo no Laos.
A Luang Prabang com que me deparei pouco mais era do que uma aldeia grande com um aeródromo, onde pastavam vacas, quase sem quaisquer outras modernices. E, no entanto, a bonita capital do norte montanhoso, cartão-de-visita por excelência, parecia votada a tornar-se o destino favorito dos turistas de passo, de pele encarnada e a arrastarem os pés, que viajam apenas com o intuito de encontrar mais um restaurante com comidinha europeia e insossa, uma moto potente para poderem passear à vontade, um café com batidos de frutas e que nem sequer se dão ao trabalho de visitar os templos mais significativos ou lancer uma olhadela aos becos e bastidores das ruas principais. Turistas que se mostram ofendidos e armam grande alarido só porque a pobre senhora da pensão não faz a mínima ideia do que é uma panqueca de banana.
A mentalidade era a mesma, fossem eles betinhos assumidos ou “freaks” em período abstémio, a desenjoar, nas montanhas, do excesso de “raves” e de “esctasy” das praias do sul da Tailândia. Poucos, raríssimos, espécimes em extinção, os estrangeiros que questionavam a sua presença e os seus actos nessas paragens e que atiravam para a conversa matéria de reflexão. Era o caso do australiano Peter Murray, antigo motorista de autocarros.
«– Com a nossa vinda a locais como este estamos a contribuir, quer queiramos ou não, para um acentuar progressivo das diferenças sociais na aldeia. Ao escolhermos este ou aquele restaurante para comer, esta ou aquela loja para comprarmos o nosso artesanato favorito, acabamos por contribuir para o reacendimento da inveja entre os locais e o desaparecimento dos tecidos de solidariedade tradicionais», comentava ele, sentado à mesa com vários outros farangs. «– E que trazemos nós a esta gente?», insistia, filosófico, o australiano. «– A maioria de nós só aqui deixa uns quantos dólares, que os locais vão utilizar, para não fugir à regra, da pior das maneiras, e dezenas e dezenas de garrafas de água mineral vazias que vão ficar para aí a chafurdar nos campos».
Os outros farangs, apáticos, nada diziam. Concentravam-se nos respectivos pratos de esparguete a nadar em “ketchup” e o eterno arroz frito cheio de cebola.
Ao ouvir as dissertações de Peter, veio-me à memória a imagem de uma mulherzinha de pijama a sair de um Mercedes (asseguro-vos de que um Mercedes em Luang Prabang dava nas vistas!), que acabara de estacionar ostensivamente em frente do posto de imigração, onde se perpetuava o velho hábito das carimbadelas. Almoçava na altura uma daquelas saladas com muitíssimo piripiri, acompanhada de bolachas de arroz insuflado, secas ao sol nas eiras das casas, que ali eram alimento comum, mas que nas lojas de macrobiótica da Europa se vendiam ao preço do ouro. A dita senhora sentou-se precisamente ao lado da vendedeira de rua que me preparara o petisco, e, palavra puxa palavra, o termo farang (estrangeiro) veio à baila. E com ele um sorriso trocista. Mas aquele não era o olhar laosiano sincero a que a gente depressa se habituava, o que constituía um indicativo de mudança de mentalidade. Era evidente que o Mercedes subira à cabeça da senhora de pijama. Já então temia que a proximidade geográfica com a Tailândia e a facilidade com que se obtinha agora o visto fossem factores passíveis de estuporar o Laos em três tempos. Pois não havia cortesia que resistisse ao avanço boçal dos grupos de turistas e aos inarráveis sorridentes-em-busca-da-espiritualidade-da-treta que quase pediam licença para existir e forçavam sorrisos onde eles não tinham lugar. Insuportáveis. Uns e outros.
Joaquim Magalhães de Castro