Laos – As montanhas do Calaminhã – 1

A proximidade com o Triângulo Dourado.

Visitei o Laos logo após a sua abertura ao mundo exterior, na década de 1990. Mas já antes, anos antes, olhara-o à distância. Recuemos então uns bons anos e situemo-nos no norte da Tailândia, na denominada região do Triângulo Dourado. O cenário: a pequena cidade de Nong Khai, junto ao Mekong, fervilhante de gente em movimento, como é apanágio de qualquer povoação do Sudeste Asiático. Da outra banda, no Laos, um camião azul progride lentamente num trilho traçado na vegetação, levantando nuvens de poeira.

«– Veja como vivem as pessoas nesse regime retrógrado. Nem sequer se avistam aldeias, apenas barracas», comenta um indivíduo de trinta e poucos anos, sentado ao meu lado numa pequena tasca local.

Somdeth Savang (assim se chamava o homem) convida-me então a bebericar uma Singha fria e põe-se a falar. Após horas de uma conversa que se arrastou por essa tarde de “Inverno” subtropical, fiquei a conhecer um pouco mais a respeito do Laos, na altura ainda com as fronteiras estritamente encerradas a qualquer visitante estrangeiro. O homem que tinha pela frente fora um refugiado que, anos antes, arriscando a própria vida, atravessara o Mekong, emigrando posteriormente para os Estados Unidos. Desencantado com o sonho americano, que se esfumou em horas e horas de trabalho árduo a troco de escassos dólares, estava de regresso para se instalar definitivamente na Tailândia.

Somdeth Savang estava longe de imaginar que, uma década e meia após essa nossa conversa, o Laos abriria as suas fronteiras ao turismo e ao capital multinacionais. Provavelmente, é hoje um dos vinte e quatro milhões de cidadãos siameses de origem laosiana a residir nas províncias de Chiang Rai, Ubon Ratchathani e Udon Thani, no norte, nordeste e leste da Tailândia, sendo este número doze vezes superior à totalidade da população do Laos.

«– E essa gente manifestou desejo de voltar ao seu país natal, agora que a situação mudou?», a pergunta foi dirigida a um professor primário que encontrei em Nong Khai quando aí regressei, em meados da década de 1990. «– Nunca», respondeu ele. «– Preferem, apesar de tudo, viver sob uma monarquia. Mesmo que ela seja tailandesa, por muito estranho que pareça. Este apego à monarquia só o compreende o próprio laosiano. Os avós dos adultos de hoje ainda se recordam do tempo em que o Laos era governado por dois reis. Aquando da chegada dos franceses, em 1860, eram já três os soberanos. O mais prestigiado de todos reinava a partir de Luang Prabang, no Norte; o mais rico ficara instalado no Sul, em Champassak; e o mais modesto refugiara-se nas montanhas de Xieng-Khouang, no interior profundo».

 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Desde que há registos escritos, o Laos tem sido habitado por povos migratórios de estirpe thai-kadai (que inclui os mon, os shan, os siameses e os lao) e pelos hmong-mien, etnia que ainda hoje vive do sistema agrícola de corte e queima. Os primeiros lao meung (distritos) seriam consolidados no século XIII, na sequência da invasão do sudoeste da China pelas hordas mongóis de Kublai Khan.

Os laosianos e os tailandeses partilham imensos aspectos idênticos ou bastante semelhantes – a língua, as feições, os costumes – a ponto de os anais chineses do século VII os considerarem “grandes povos irmãos”, numa época em que deambulavam ambos pelo sul da China. O império viria a confiná-los à região do Yunnan, onde acabaria por ser fundado o Nam Chao, “reino do rio”, antes de estes povos se estabelecerem em dois pequenos Estados na Indochina.

Em meados do século XIV, Fa Ngum, um senhor da guerra apoiado pelos vizinhos khmer, estabeleceria o seu próprio reino – Lan Xang, “reino dos milhões de elefantes” – na sequência de uma coligação de diversos meungs reunidos em torno de Luang Prabang. Ficaria assim consolidado o espírito nacionalista da etnia lao, que os acontecimentos históricos dos séculos seguintes iriam pôr constantemente em causa.

Malgrado o reino ter prosperado ao longo dos séculos XIV e XV, acabou por sofrer as consequências da forte pressão imposta pelos reinos vizinhos e também devido às divisões internas que entretanto se manifestavam. Lan Xang acabaria por se subdividir, no século XVII, em três pequenos reinos espalhados por Luang Prabang, Wieng Chan (hoje Vientiane, a capital) e Champasak.

Nos finais do século seguinte, todo o Laos ficaria sob a soberania tailandesa, mas também os vietnamitas exigiam que lhes fosse pago tributo. Incapaz ou sem vontade de servir dois senhores simultaneamente, o País optou por entrar em guerra com o Sião, em 1820. As consequências desta decisão seriam desastrosas: todo o território cairia sob o domínio tailandês.

Ao longo do século XIX os franceses, senhores coloniais da região, estavam demasiado ocupados a consolidar a Indochina, através da fusão dos reinos de Annam e de Tonquin. Por volta de 1893, franceses e siameses tinham estabelecido uma série de acordos que colocava todo o território do Laos sob a protecção francesa.

Durante a Segunda Guerra Mundial, tropas japonesas ocuparam a Indochina proporcionando o despontar de um movimento de resistência no Laos – o Lao Issara – cujo objectivo era evitar o restabelecimento do poder colonial francês uma vez terminada a guerra. O tratado franco-laosiano de 1953 garantiu a independência total do País, mas os conflitos persistiriam entre realistas, neutros e as facções comunistas. Em 1963 dar-se-ia início ao bombardeamento americano do trilho de Ho Chi Min, provocando a escalada do conflito entre os realistas apoiantes do Governo em Vientiane e os simpatizantes do Partido Comunista.

Apesar da guerra travada em terra firme no Laos ter sido bastante menos sangrenta do que aquela desenrolada no Vietname e no Camboja, o bombardeamento no leste do País provocou imensas vítimas e contribuiu enormemente para a migração em massa das populações dessa área, um processo que se prolongou até ao cessar-fogo, acordado em 1973, tendo sido formado um Governo de coligação. Porém, com a queda de Saigão, em 1975, ficou claro qual seria o vento político a soprar mais forte em toda aquela região. Em Dezembro de 1975 nasceria a República Popular Democrática do Laos.

 

O PIONEIRISMO PORTUGUÊS

Mas séculos antes de o poder colonial francês se instalar, pelos recantos desse efabulado reino movimentaram-se aventureiros e missionários portugueses, entre os quais o nosso Fernão Mendes Pinto, que nas páginas da “Peregrinação”, obra-prima da literatura mundial, nos fornece relatos exaustivos do permanente estado de guerra civil em que vivia toda aquela região.

O dominicano Gaspar da Cruz, outro dos pioneiros portugueses nestas paragens, lembra no seu Tratado das Coisas da China e do Reino de Ormuz que, “ainda que comummente não haja guerras entre os Laos e os chinas”, o factor geográfico, “as grandes serras que há entre uns outros”, é motivo para que ambos tenham “gente de guarnição para defesa daquelas partes”, o que não evita porém que haja continuamente “assaltos de uma banda e outra, pelo que podiam os laos ter chinas cativos”.

Este seu parecer vinha a propósito de alguns chineses que integravam o exército rival birmanês terem sido feitos prisioneiros, facto que lhe fora relatado por Jorge de Melo, um dos inúmeros lançados presentes na Ásia, e a respeito dos quais seria interessante fazer um estudo aprofundado.

As ameaças e agressões ao novo reino vieram de vários lados: dos vizinhos birmaneses – como recorda o frade dominicano, “antes que estes laos fossem subjugados pelos bramas, levaram a Sião e a Camboja e a Pegu algum almíscar muito bom e ouro de que se afirma haver muito em aquela terra” – mas sobretudo dos tailandeses, cujos saques, incêndios e deportações originaram o seguinte ditado popular, que ainda hoje prevalece: “se vires uma serpente e um tailandês, mata primeiro o tailandês”.

Fernão Mendes Pinto, como já aqui se disse, chegou a integrar, com outros cento e vinte portugueses, “dos cento e trinta que então aí estávamos”, o contingente militar, “de quatrocentos mil homens”, ao serviço do rei do Sião que foi combater no norte o monarca rebelde de Chiang Mai.

Os episódios que nos relata nos vários capítulos dedicados a estas guerras traduzem bem a animosidade que sempre distanciou e dividiu pequenos reinos que se estendiam por uma vasta região integrada hoje em países como o Laos, a Birmânia, a Tailândia, o Camboja, o Vietname e o sul da China.

Joaquim Magalhães de Castro

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