Teologia pastoral para um mundo pós-moderno
Inovador, sem ser revolucionário. Jorge Mario Bergoglio obrigou o cânone teológico católico a mudar de estilo e a abrir as portas a um novo paradigma: a teologia pastoral. Teólogos e especialistas ouvidos pel’O CLARIM reconhecem que o facto de Francisco não ser formalmente um teólogo, como quase todos os Papas que o antecederam, não significa que não tenha deixado obra e doutrina. Os doze anos de Pontificado foram pautados por duas características fundamentais: a conexão ao Concílio Vaticano II e a urgência em aproximar a Igreja do mundo.
Desde que foi eleito, o Papa Francisco assumiu-se como uma figura transformadora, não apenas dentro do panorama da Igreja Católica, mas também como um actor influente nos grandes palcos mundiais.
Jesuíta, escolheu o nome “Francisco”, evocando o Santo de Assis, símbolo da pobreza, da paz e do cuidado com a criação. A escolha não foi fortuita, como mostra o percurso, pautado por uma sensibilidade profundamente pastoral.
O gesto inicial antecipou um Pontificado marcado pela simplicidade e por um compromisso permanente com os mais vulneráveis. O Santo Padre procurou acrescentar à Doutrina da Igreja e ao debate teológico um evidente cunho pastoral, através de uma proposta explícita de renovação teológica profundamente enraizada no Concílio Vaticano II.
«A teologia do Papa Francisco não é revolucionária num sentido estritamente teológico, mas leva muito a sério tudo o que foi desenvolvido antes, com a excepção de alguns aspectos, como é o caso da “Teologia do Povo”, que é um conceito latino-americano que defende que os ministros ordenados devem caminhar com os fiéis, do mesmo modo que o pastor caminha com as suas ovelhas», defendeu Sigrid Müller, teóloga alemã, em declarações a’O CLARIM.
«Muitas das principais características da sua teologia podem ser vistas como expressões ou desenvolvimentos de preceitos teológicos que estão enraizados na teologia do Vaticano II, em particular a percepção de que através da graça baptismal todos os baptizados estão capacitados para ser sacerdotes, reis e profetas e, como tal, a sensibilidade dos fiéis, tidos de forma geral, será sempre guiada pelo Espírito Santo», acrescentou a professora de Teologia Moral na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Viena, na Áustria.
Ao promover, nas cartas encíclicas e exortações apostólicas que assinou, uma maior atenção à realidade vivida por homens e mulheres, crianças e famílias, o Papa Francisco procurou colocar a Igreja em sintonia com os desafios e a cultura do Século XXI, e reabilitar o legado do Vaticano II. Um dos principais contributos do Concílio foi aproximar a teologia e a acção pastoral, e a fé e a vida.
Segundo o padre Franz Gassner, SVD, foi por meio de documentos como Evangelii gaudium, Laudato si’ e Fratelli tutti que o Papa Francisco emprestou um contributo decisivo para que o Concílio Vaticano II se cumprisse em toda a sua plenitude. «Todos os três Papas do Século XXI implementaram o Concílio Vaticano II, ainda que cada um com o seu estilo e enfoque únicos. É um processo que vai continuar durante as próximas décadas e – eventualmente até – nos próximos séculos. Ainda estamos longe de compreender e implementar totalmente o Concílio Vaticano II. O método e o caminho sinodal revelaram-se muito úteis em todo este processo, evidenciando o cuidado e a assinatura pastoral que são específicos de Francisco. Creio que o legado dos três pontífices vai prevalecer a longo prazo e os seus contributos específicos vão integrar-se harmoniosamente na vida da Igreja», disse o sacerdote austríaco, missionário da Sociedade do Verbo Divino.
Mais: «o caminho sinodal ajuda a revelar e a implementar várias dimensões importantes do Vaticano II, sobretudo no que diz respeito ao papel dos leigos. Todos os baptizados são, hoje em dia, convocados para serem testemunhas missionárias da Boa Nova. São chamados a assumir mais responsabilidades na vida da Igreja e no seu envolvimento com o mundo, de forma a favorecer a implementação do diaconado permanente a nível global», sublinhou o antigo director da Faculdade de Estudos Religiosos e Filosofia da Universidade de São José (USJ).
TEOLOGIA E ECOLOGIA
Num mundo marcado pela indiferença, desigualdade e pelo alargamento do fosso social, Francisco falou com clarividência em Evangelii gaudium e Fratelli tutti sobre os pobres, migrantes, descartados; jovens sem futuro, idosos abandonados e povos oprimidos pela guerra ou pela ambição financeira.
Em Laudato si’, o Pontífice promoveu uma inédita confluência entre ciência, ética, teologia e política. Na Encíclica, faz a apologia de uma transformação profunda dos actuais modelos de desenvolvimento e alerta para necessidade de cuidar “da nossa Casa Comum”.
Para o padre Gassner e Sigrid Müller, a Laudato si’ é o mais relevante dos documentos papais redigidos por Francisco, dado que sintetiza o essencial da sua mensagem pastoral. «Uma colega minha de Paris, Dominique Coatanea, argumenta – e bem – que a Laudato si’ e a Fratelli tutti devem ser vistas como duas faces da mesma moeda: a protecção do mundo, tido como a nossa casa comum, não pode ser alcançada sem que a dignidade dos seres humanos seja protegida. A ecologia ambiental e a ecologia humana têm de juntar esforços e caminhar lado a lado, porque não há forma de proteger o mundo sem mobilizar os seres humanos, do mesmo modo que não é preservada a dignidade humana sem que outros seres vivos, que pertencem ao plano divino da criação, sejam protegidos», contou Sigrid Müller, tendo adiantado: «Estudos interdisciplinares permitiram-nos perceber que aqueles que são economicamente marginalizados são, muitas vezes, os que mais sofrem com as consequências da crise ambiental. O Papa Francisco defendeu repetidamente que não devemos “virar a cara”, mas partir ao encontro dos marginalizados e criar laços de solidariedade entre as religiões para criar uma fraternidade universal».
Francisco não impôs uma nova doutrina, mas colocou em andamento uma conversão pastoral que marcou o espírito dos turbulentos tempos em que vivemos. A ênfase na misericórdia, ao invés da condenação, e na sinodalidade como modo de caminhar juntos, a par de uma visão integral do papel e das responsabilidades do homem no plano da salvação, abrem janelas de esperança para o futuro da Igreja e da própria Humanidade. «Parece-me que a Laudato si’ se destaca mais, uma vez que lida com a condição dos mais pobres e com o sofrimento da mãe natureza. Francisco procurou despertar consciências para o esgotamento dos recursos, para a exploração da energia e a cultura do desperdício que leva ao sofrimento de tantos irmãos e irmãs, e que afecta a saúde do planeta. Em Laudato si’, o Papa escreve que “sempre que alguém atira comida fora é como se a estivesse a roubar da mesa dos pobres”», lembrou o padre Gassner, concluindo: «Opôs-se, veementemente, a uma irreflectida e assassina “sociedade do desperdício”, que descarta não apenas energia e recursos naturais de forma massiva, mas também os próprios humanos. Francisco qualificou o aborto como “homicídio por encomenda”, naquilo que é talvez a mais profunda ferida que permanece aberta nas sociedades modernas».
M.C.