João Armando Gonçalves, líder do escutismo mundial

«O escutismo coloca nos jovens um conjunto de valores»

É o líder de 40 milhões de escuteiros em todo o mundo e é português. João Armando Gonçalves foi eleito presidente do Comité Mundial, órgão que gere a Organização Mundial do Movimento Escutista, que congrega todas as associações nacionais escutistas no mundo. Consciente das dificuldades de gerir um movimento com tantas pessoas, tem ambições bem definidas: consagrar o escutismo como maior movimento de educação não-formal do mundo e promover a unidade do movimento.

FAMÍLIA CRISTÃCom uma estrutura tão grande, os frutos da acção do Comité Mundial sentem-se ao nível local?

JOÃO ARMANDO GONÇALVES – É difícil… não podemos ter a presunção de achar que cada vez que tomamos uma decisão a nível mundial que ela se reflecte rapidamente e directamente em cada um dos escuteiros. Eu acho é que conseguimos influenciar as organizações nacionais, e é essa a nossa principal esfera de intervenção. Tem de ser por efeito de contágio.

FCO sentido de Deus foi algo que Baden-Powell preconizou desde o início. É um pólo educativo que ainda hoje faz sentido?

J.A.G. – Para mim, pessoalmente, faz todo o sentido. A partir do momento em que procuramos proporcionar actividades para um indivíduo se desenvolver em várias dimensões, a dimensão espiritual não pode deixar de estar presente.

FCNo entanto, o Reino Unido aprovou há pouco tempo uma promessa para ateus…

J.A.G. – Não nos devemos fechar em nos próprios, mas também há uma linha que separa os limites do escutismo de outra coisa qualquer que já não é escutismo. Admito que se possa mexer na linha, e até admito que haja pessoas que entram para o movimento sem uma religião definida, mas têm de estar predispostos a fazer uma busca, e essa busca tem de existir…

FCMas uma fórmula de Promessa que exclui a palavra Deus “alivia” o escuteiro da necessidade dessa busca…

J.A.G. – Quando me dizes que numa associação há essa possibilidade de se comprometer com o escutismo sem nos comprometermos com essa busca, isso para mim foi um passo que não devia ter sido dado. Mas pronto, por vezes as organizações dão passos que se calhar não deviam ser dados…

FCO diálogo inter-religioso é uma das imagens de marca do escutismo nos seus Jamborees. É o “espírito escutista” a funcionar?

J.A.G. – Claramente. Antes desta conferência de Agosto recebemos algumas mensagens dos nossos colegas israelitas, que demonstravam algum receio de participar por causa dos conflitos em Gaza. Vieram, e no último dia da conferência disseram-me: «Estávamos com receio de vir, mas fomos muito bem aceites por toda a gente, na Feira Internacional (uma festa à noite onde cada país expunha os seus produtos) estávamos em frente dos escuteiros do Qatar, que nos vieram convidar para o seu espaço»… há um espírito muito especial nos escuteiros, e as pessoas deixam de lado esse tipo de problemas.

FCO Médio Oriente e a Ucrânia estão a ser assolados por conflitos. Como está a situação das associações escutistas nesses locais?

J.A.G. – Os relatos que vamos tendo deixam-nos muito orgulhosos. Os escuteiros tem socorrido as pessoas em dificuldades. Nessas zonas de conflito isto é o escutismo, é o auxílio directo aos mais necessitados, estar no terreno a deixar o mundo melhor, como o fundador pediu.

FCOs escuteiros prestam algum tipo de serviço específico no terreno?

J.A.G. – Recolha de feridos, animação das crianças refugiadas, distribuição de alimentos e outros géneros, acolhimento de refugiados de outros países, como a Tunísia e o Líbano, que estão a receber refugiados sírios, prestação de socorros imediatos no terreno, enfim, tudo o que é necessário…

FCO facto de a Organização Mundial do Movimento Escutista reconhecer a existência de uma associação nacional palestiniana implica o reconhecimento da Palestina como um Estado soberano?

J.A.G. – Esse foi um tema muito presente na última conferência, porque o Estado da Palestina tinha um estatuto especial, atribuído na conferência de Oslo, em 1996. Com o ressurgimento deste conflito, volta a vontade de ser membro de pleno direito, e esta conferência aprovou uma resolução para tratar do processo formal de adesão da Palestina à OMME como membro de pleno direito. Falámos com os companheiros israelitas, que apoiaram a ideia. Aliás, conta a história que, em 1996, foram os israelitas que apresentaram a moção de aprovação da Palestina, o que demonstra este espírito de unidade.

FCMuito se fala de jovens recrutados como jihadistas. Há relatos de tentativas de recrutamento de escuteiros?

J.A.G. – Admito que possa haver a tentação, mas não ouvi nenhum relato até agora. Há pouco tempo li um artigo de uma jornalista que relatava como, no Congo, o escutismo está a conseguir desviar os jovens dos movimentos de crianças-soldado. É um relato impressionante do papel desempenhado pelos escuteiros neste país.

FCE também na Europa o escutismo pode ter esse papel dissuasor?

J.A.G. – Não tenho a menor dúvida disso. Acreditando no conjunto de valores que os escuteiros têm, o escutismo tem esse efeito colateral de colocar nos jovens um conjunto de valores que não são compatíveis com esse tipo de atitudes e vida.

FCEm Portugal e na Europa, o escutismo continua a crescer… qual é o segredo do sucesso?

J.A.G. – Em termos europeus, os últimos anos tem mostrado um aumento do efectivo, à custa de algumas associações em particular, como a do Reino Unido, onde houve uma reinvenção do escutismo. Tenho estado um pouco afastado da realidade portuguesa, mas o que conta no nosso país é a autenticidade do trabalho que fazemos. Há duas coisas que, para mim, atraem os jovens: o sentido de comunidade, de estar num grupo de amigos. Hoje em dia temos 2000 amigos com facilidade, mas pertencer a um grupo que implique contacto pessoal é muito importante; por outro lado, as actividades. Até me podem dizer que já se fazem actividades de acção fora dos escuteiros, mas são muito “toca e foge” e não tem este tipo de alma, mística, que o escutismo tem, este sentido do secreto, uma coisa que é nossa.

FCQuando Baden-Powell idealizou o escutismo, pensou nos miúdos de estratos sociais mais baixos, mas hoje o escutismo é transversal a toda a sociedade. Mudou a realidade ou o público-alvo?

J.A.G. – Essa é uma bela pergunta que não se põe apenas aqui. Muitas vezes o escutismo é visto como atingindo a classe média ou alta e esquecendo a classe baixa. Em Portugal abrimos as portas e deixamos entrar todos, mas não vamos à procura dessas franjas. Em França, por exemplo, há um esforço de sair às periferias e ir aos bairros buscar esses miúdos e trabalhar com eles. No México estão a tentar abrir grupos em zonas dominadas por cartéis de droga, tentando oferecer aos jovens uma alternativa à vida dos cartéis. Essa abordagem exige coragem, sairmos da nossa zona de conforto, e era um esforço que valia a pena fazer.

FCNuma altura crítica para a família conforme a conhecemos, que papel pode ter no fortalecimento das relações familiares?

J.A.G. – Penso que o escutismo desempenha o papel de rede de segurança da família. Numa altura em que o conceito de família está cada vez mais elástico, com miúdos que um fim de semana estão com o pai, outro com a mãe, isso coloca exigências aos grupos. A família tem muitas nuances, mas o escutismo não muda. É o tal local onde eles podem refugiar-se quando tem situações mais complicadas a nível familiar, e o grupo de amigos que se cria desempenha um papel muito importante em alguns casos.

FCEnquanto líder mundial, qual a visão que tem da família em termos globais?

J.A.G. – Nestas viagens que tenho feito pelo mundo, tenho-me apercebido de algo muito interessante: apesar de toda a diversidade que existe no mundo, há coisas fundamentais em que somos todos iguais. E uma delas é esta relação básica da família. Tenho testemunhado que a relação familiar é tão básica, tão interior, tão humana, que não muda. Pode ter vários formatos e dimensões, mas a família existe, porque é fundamental e tem uma importância muito grande naquilo que é cada pessoa. O escutismo tem impacto e um efeito de contágio na criança e na família e vice-versa, e tem muita importância naquilo que é o desenvolvimento integral dessa criança.

RICARDO PERNA

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