O santo-guerreiro de Cirebon
A conquista islâmica de Sunda – a avaliar pelo relato do cronista João de Barros – foi levada a cabo por um tal Fatiah Allah, “conquistador de Alá”, ou Fatahillah, “vitória de Deus”, nativo de Pasai, exilado da sua terra aquando da acção vitoriosa dos portugueses. Em Meca, onde terá passado três anos, aprofundou os seus conhecimentos religiosos, e ao regressar à sua terra, agora na qualidade de “caciz de Mafamede”, optaria pela cidade de Jepara onde terá logrado converter ao Islamismo o soberano local que, como forma de agradecimento, lhe concedeu a mão de uma das suas irmãs. Em quase completa contradição com a versão dos cronistas coevos portugueses está a crónica dos acontecimentos decorridos no principado de Cirebon, a Carita Purwaka Caruban Nagari, redigida em 1720. Segundo essa crónica (pouco fiável) Fatahillah seria de origem guzarate e teria desposado a irmã de Pangeran Trenggana, senhor de Demak, para tomar de seguida, em segundas núpcias, a irmã de Sunan Gunung Jati, um dos nove apóstolos muçulmanos de Java. Por sua vez, uma outra crónica local, a Babad Tanah Jawi, assegura que a mão da irmã mais nova de Sunan Gunung Jati, “que na época governava Cirebon”, fora concedida a Sunan Kalijaga, apóstolo como ele, mencionando ainda o casamento de Ratu Mas, “filha primogénita de Raden Patah”, ou seja, irmã mais velha de sultão Pangeran Trenggana, sem, contudo, indicar o seu nome.
De Sunan Gunung Jati, fundador dos sultanatos de Cirebon e de Banten, dizem as crónicas locais que derrotou os portugueses em Sunda Kelapa, em 1527, e que depois viveu longa vida – 120 anos, reza a lenda – tendo perecido em Cirebon em 1570. Na realidade, a maioria dos autores modernos considera que Fatahillah e Sunan Gunung Jati, “o santo do monte da teca” – título derivado do nome onde se encontra sepultado, numa colina a cinco quilómetros a oeste de Cirebon –, sejam a mesma pessoa. Ora, por esse local tinha eu passado inúmeras vezes nas minhas múltiplas deslocações entre Indramayu e Cirebon, desconhecendo a sua relevância histórica. Que era sítio de culto, sabia-o, até pelo inusitado movimento das pessoas naquele troço de estrada ladeada por barracas com artigos religiosos à venda.
O mausoléu de Sunan Gunung Jati, “um dos pontos de peregrinação mais importantes de Java”, situa-se praticamente no topo da colina e tem um cuidador de serviço 24 horas por dia. «– Há pessoas que em momentos difíceis da sua vida passam aqui alguns dias de reflexão. Foi o que fez uma irmã minha», diz-me ele, socorrendo-se do seu magro Inglês. De formato abobadado brancas são as paredes e nelas vejo embutidas, a espaços regulares, dezenas de pratos de cerâmica de fabrico europeu, que vão sendo substituídos por objectos similares trazidos pelos peregrinos. Igual tipo de ornamento se observa nas restantes sepulturas, se bem que em escala mais modesta. Esta é uma prática de embelezamento bastante comum também na costa oriental de África. Muito agradável a descrita necrópole; todo ela sombreada pelas copas de frondosas árvores onde despontam plumerias, essas belas e cheirosas flores que os portugueses trouxeram das Américas e por todo o mundo disseminaram. É a minha flor de eleição, sem sombra de dúvida. O panorama usufruído a quem chega ao topo da colina inclui retalhos de campos de arroz e um leito de oceano quadriculado pelos engenhosos sistemas tradicionais de pesca do marisco que confere à região a merecida fama.
A história do venerado santo-guerreiro conta-se em duas penadas. Após uma estadia de dois anos nos domínios de Jepara, o “conquistador de Alá” mudou-se para Banten, onde fez inúmeras conversões e, tirando partido da morte do senhor local – o prabu que em 1522 estabelecera o acordo com os portugueses e, desde então, aguardava que estes erguessem ali fortaleza –, pediu a Demak uma força de dois mil homens com os quais, numa brilhante medida de antecipação, assumiria as rédeas do poder. Consta que o seu filho, Hasanuddin colaborou com ele, liderando as forças que vieram pelo interior enquanto ele atacava pela costa. Assim, em 1526 temos já em Banten um reino muçulmano que até 1546 seria vassalo do de Demak, tendo depois obtido independência que acabaria por perder definitivamente após a conquista do porto pelos holandeses em 1682. Na sequência da tomada de Banten, receosas dos portugueses, as forças de Fatahillah apossaram-se também de Sunda Kelapa, que rebaptizaram com o nome Jayakarta, “obra da vitória”, de onde deriva o actual nome. Foi fundada essa cidade – segundo os textos portugueses – a 22 de Julho de 1527, numa altura em que dava à costa um bergantim da armada de Francisco de Sá, cujos tripulantes acabariam massacrados. Escreve João de Barros: “todos morreram às mãos dos Mouros que estavam em terra, os quais havia poucos dias que eram senhores dela”. É bem provável que no auge da conquista muçulmana tenha sido arrancado o padrão português ali existente, e levado como troféu para Jacarta. Fica assim explicado o facto de o mesmo ter sido encontrado, em 1918, por arqueólogos holandeses, no centro dessa cidade – entre a Jalan Kali Besar Timur I e a Jalan Cengkeh, perto da actual estação de caminhos-de-ferro, Stasiun Kota. Houve, por isso, necessidade de voltar a erguer novo padrão. E no mesmo lugar. Mas isso são contos de outra história.
Joaquim Magalhães de Castro