O colo de Kudus
Kudus, importante cidade sagrada islâmica no século XVI, é o único lugar em Java que preserva o nome árabe (“al-Quds”, Jerusalém), contudo, laico olhar associá-la-á forçosamente ao fabrico do tabaco – há um museu dedicado ao ramo, o Museum Kretek – e, mais especificamente, à famosa marca de cigarros com cravinho que provocam estalidos quando fumados. Estabeleceu aqui residência Sunan Kudus, outro dos nove wali sanga, após largos anos como imã na mesquita de Demak e um dos principais líderes da campanha de Trenggana contra o reino de Majapahit, em 1527. Data dessa época a Masjid Menara, senhora ainda das suas formas arquitectónicas pré-islâmicas. Nas portas divisórias e na alvenaria de notório cariz hinduísta, avistam-se, aqui e ali, incrustados na tijoleira, os nossos já conhecidos pratos de cerâmica. A data 956 (corresponde a 1549) inscrita no nicho de uma das entradas serve de indicador ao devoto: Meca é na apontada direcção. Também aqui reza gente anónima, profundamente recolhida, defronte aos jazigos de familiares e amigos. Se alguém se ausenta por instantes fica o Alcorão pousado em cima da lápide, como que a marcar lugar.
Tempo para almoçar um par de baksos – aqui particularmente picantes – e olhar de novo o mapa em busca de orientação viária. É então que me salta à vista um intrigante Colo, povoação no sopé do vulcão Muria. Situa-se precisamente na confluência de duas montanhas, ou seja, num desfiladeiro ou garganta. Ora, tais vocábulos, no devido contexto, são sinónimos de “colo”. Não podia ter sido mais assertivo o português responsável por tão feliz designação. A meio do povoado temos a entrada de um longo carreiro em toda a sua extensão ladeado por tendinhas de artigos religiosos, iguais às das nossas feiras, que conduz ao mausoléu de Sunan Muria, santo e neto do notável teólogo Maulana Ishaq. Distingue Sunan Muria dos restantes walis a proximidade com as pessoas comuns. Pregava sempre em áreas rurais e remotas, junto de camponeses, pescadores e desvalidos. Em jeito de recompensa veria o seu nome associado “ad aeternum” ao inactivo vulcão.
Curiosamente, Colo é também sede da evangélica Gereja Injili di Tanah Jawa, à qual se encontra associado o místico cristão Kiai Ibrahim Tunggul Wulung, personagem ainda hoje envolto numa áurea de mistério. Supostamente de linhagem real javanesa, teria nascido com o dealbar do século XIX e participaria na Guerra de Java (1825-1830) contra o domínio colonial. A partir de então novo rumo daria à sua vida. Mudar-se-ia para os arredores de Kudus, mais propriamente para o bairro de Juana (outro nome com sonoridade portuguesa), para assim camuflar o seu passado. Eterno descontente, Tunggul Wulung acabaria os seus dias como eremita no monte Kelud, na parte oriental do interior de Java. Há quem sugira ser ele o autor do “Serat Darmogandul”, tratado javanês do século XIX.
Nas imediações de Jepara abundavam as florestas de teca, razão pela qual o reino cedo investiu na construção naval, tendo até constituído poderosa frota capaz de destronar o poderio de Malaca, como já aqui foi dito. E é com esse cenário, filas de árvores de teca a ocultarem arrozais, que cumpro a viagem até Jepara, onde outrora governou Pati Unus. Só bastante tempo depois, de 1546 a 1579, a rainha Ratu Kalinyamat, líder capaz e corajosa, retomaria a política expansionista daquele sultão. Na obra “Da Asia” o cronista Diogo de Couto descreve-a como “Senhora Rainha de Jepara poderosa e rica”. Seria assinalado o seu reinado por duas ousadas campanhas – em 1550 e 1574 – contra os portugueses instalados em Malaca. Hoje, a memória no feminino assenta numa outra filha da terra, Raden Adjeng Kartini, pioneira na defesa dos direitos das mulheres e à qual a cidade dedicou um museu.
Durante o apogeu do reino de Mataram, Jepara seria utilizado como porto de partida e de chegada pelas tropas dispostas a recuperar Jacarta dos holandeses, que após a conquista, em 1619, lhe alteraram o nome para Batávia. Não ficaria pelos ajustes o sultão Agung HanyoKroKusumo, dono de Mataram. Cercou Batávia por duas ocasiões, em 1628 e 1629, mas sem qualquer sucesso. Convenceu-se então o monarca que os holandeses só poderiam ser derrotados com ataques terrestres e marítimos em simultâneo, mas como Mataram não dispunha de uma frota naval poderosa necessitaria da ajuda de terceiros. Neste caso, dos portugueses, tradicionais inimigos dos homens da VOC. Assim, em 1632, uma aliança forjada entre os reinos de Mataram e Portugal autoriza a tropa lusa a erguer fortificação junto à costa, a cerca de 45 quilómetros a norte de Jepara. Isso mesmo garante a não despiciente tradição local. Se o fortim foi ou não erguido pelos portugueses, o certo é que o nome perdurou e ainda hoje o conhecem como Benteng Portugis, “forte português”, sendo uma das principais atracções turísticas da região.
Joaquim Magalhães de Castro