Santo Niño milagreiro e o leão chinês
E porque serve de mote ao tema que aqui nos traz hoje, continuemos a apreciar os quadros de J. Gonzalve, neste caso aquele que nos mostra Miguel López de Legazpi – “primeiro e irmão-mor da Confraria do Santo Niño”, reza a legenda – a entregar a pequena escultura a um cebuano para que este a colocasse no exacto local onde fora descoberta, pois era aí que devia ser construída a igreja. Falamos da estátua que Fernão de Magalhães mandou oferecer à mulher do rajá Humabon, 45 anos antes. Determinado a conquistar Cebu, o biscaínho acabara de derrotar os guerreiros do novo senhor da ilha, rajá Tupas, cujos súbditos tinham entretanto esquecido a atribulada passagem dos primevos circum-navegadores e os que na altura haviam abraçado a nova fé vinda do oceano há muito estavam regressados ao animismo de sempre.
A imagem fora encontrada, relativamente intacta, pelo soldado Juan Camus, numa pequena arca guardada numa das casas queimadas, pois a aldeia nativa havia sido literalmente arrasada pelos espanhóis. O episódio é, aliás, tema recorrente nas angélicas, ingénuas e, de certa forma, fantasiosas pinturas expostas nas paredes do corredor lateral da basílica do Santo Niño. O assentamento espanhol a devir chamar-se-ia Villa del Santisimo Nombre de Jesus, em homenagem ao Santo Niño, mas até que fosse uma realidade muitos anos decorreriam.
Entretanto, a inusitada presença de castelhanos numa região atribuída à Coroa Portuguesa na sequência do Tratado de Saragoça (1529), que retificou o de Tordesilhas, assinado em 1494, chamaria desde logo a atenção dos portugueses sedeados nas Molucas e que há décadas sulcavam aquelas águas. Aliás, o arquipélago filipino inseria-se no universo das ilhas da especiarias, embora não tivesse esse tipo de riqueza, e só por isso não recebera ainda nenhum entreposto. Aproveito para informar que esta matéria dará pano para, pelos menos, duas crónicas, mas só lá mais adiante. Resguardemo-nos por enquanto um pouco mais nas grossas paredes da basílica de Santo Niño, já que o Sol continua no zénite. Outra das curiosidades que nos revelam as frescas galerias são os milagres atribuídos ao Jesus menino devidamente descritos ao visitante numa série de molduras na parede oposta aquela que nos vai mostrando, em pinturas – umas adultas, outras quase infantis – o historial da ilha. Relato-vos um dos mais tocantes, e que teve como protagonista Fernando Saavedra de Gracia, membro da guarnição do navio Barcelona.
Numa carta enviada de Manila ao seu amigo de Cebu, Don Fidel Maas y Matti, a 26 de Setembro de 1877, Gracia conta que na manhã de 3 de Setembro desse mesmo ano saira apressadamente da igreja de San Agustín (assim se chamava então a basílica) para voltar ao seu navio, mas, para seu espanto, quando chegou ao cais já o Barcelona havia já zarpado, rumo a Manila. Foi então que um rapaz a bordo de um baroto (pequena barcaça) se aproximou dele e, num Espanhol fluente, lhe disse: “Sei qual o navio em que devia ter embarcado. Venha comigo”. Aflito, Gracia não hesitou. Saltou para a embarcação, e só ao cabo de algumas centenas de metros reparou que, apesar do miúdo praticamente não estar a remar, a embarcação avançava rapidamente. Atónito, virou-se para ele com uma interrogação no olhar, e ouviu: “Então, não vê? O navio está mesmo à sua frente”. De facto, assim era. Encontravam-se já a estibordo do Barcelona e da amurada era lançado um quebra-costas para que Gracia subisse a bordo. Quando o espanhol inquiriu acerca do custo do frete, o rapaz disse-lhe que entregasse o dinheiro às freiras do Hospicio de San José, em Manila. Surpreendido com tamanha generosidade, quis saber Gracia então o nome do garoto, ao que este lhe respondeu: “sou Jesus de Cebu”. E logo sumiu com o seu baroto no horizonte.
Podia passar aqui o resto da tarde, pois tenho por hábito ler todas as legendas daquilo que vejo exposto, por mais insignificantes que possam parecer, mas o dia está bonito demais para visitar museus. Porém, não posso deixar o complexo religioso sem antes apreciar uma vez mais a fachada da igreja cuja estatuária em alto-relevo vagamente evoca as “nossas” ruínas de São Paulo. Repousa agora no chão o sino patrono, benzido em 1750 por frei Andres Puertas e apropriadamente baptizado de “Santo Nino del Zebu”, que ocupava o lugar central no campanário que ruiu em Outubro de 2013, na sequência do devastador terramoto de Bohol, sentido com bastante intensidade também em Cebu. O campanário seria entretanto reconstruído e o sino, devido ao seu porte (consta que terá sido o seu peso a causa da derrocada), ficaria em terra, feito agora amuleto onde os crentes depositam moedas na esperança que sejam ouvidas as suas preces.
No quarteirão seguinte não passa despercebida a alvíssima catedral metropolitana, cuja construção foi iniciada em 1689 e só em 1919, devido a condicionalismos impostos pelo homem e pela natureza, seria concluída. Avisto um estranho leão negro ao lado esquerdo da entrada principal. Que faz ali? É comum ver leões do género à entrada dos templos chineses, mas junto a uma igreja católica não deixa de ser uma visão insólita. Talvez se deva a iniciativa a algum devoto de etnia chinesa mais supersticioso. Ornamento arquitectónico tradicional no Império do Meio os leões guardiões, de pedra e informalmente designados cães-leão, têm como função proteger os edifícios dos maus espíritos e da gente nociva.
Mesmo em frente, no topo de um edifício, o letreiro Patria De Cebu assinala uma das acomodações mais antigas e baratas da cidade de Cebu. Fundado em 1956, e ainda gerido por freiras que o encaram com “um santuário para os viajantes”.
Joaquim Magalhães de Castro