ILHAS DE SÃO LÁZARO – 10

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 10

Os vinte dias de Magalhães

Aqui há uns anos, uma investigadora das Filipinas, de visita a Portugal, afirmava que os habitantes de Cebu associam todos os estrangeiros aos portugueses, «mesmo que sejam austríacos». Não fiquei o tempo suficiente nessa cidade para corroborar ou negar semelhante afirmação, mas o certo é que o primeiro dos cebuanos a quem apresentei as lusas credenciais – no local onde fui “pequeno-almoçar” uma omeleta com uma caneca de chocolate quente no segundo dia da minha estada – pensava que Portugal fazia parte de Espanha e, estranhe-se, não tinha a mínima ideia quem era o Cristiano Ronaldo, embora conhecesse o Messi e «aquele jogador que morde os adversários». Enfim, prossigamos com o nosso relato…

A expedição magalhânica daquele remoto ano de 1521 depararia em Cebu com um rajanato hindu, liderado por um certo Humabon, onde, originários do Japão, arribavam perfumes e utensílios domésticos, enquanto das partes indianas e birmanesas concorriam peças de marfim, couros, pedras preciosas e açúcar; e em tal quantidade que toda a região portuária (o distrito de Parian, na moderna Cebu) seria designada como “sibu” ou “sibo”, literalmente, “o local do comércio”, termo do qual despontaria o vocábulo “Cebu”. As ruas dessa zona fervilham hoje com gente, cães e crianças sem dono e nas vias paralelas, por onde sigo na esperança de vir a surpreender-me com algum marco histórico, concentram-se jeepneys e várias carroças puxadas por jumentos, curiosas reminiscências da antiga tartanilla, ou seja, o sege pelos espanhóis aqui introduzido e que noutras partes das Filipinas é designado como calesa. O seu uso estava reservado às famílias abastadas e aos altos funcionários do Estado, pois só estes tinham capacidade para comportar os custos associados a tão refinado meio de transporte. A chegada dos veículos motorizados levaria a uma diminuição drástica do seu número, podendo as tartanillas a vir a desaparecer por completo num futuro próximo.

Letreiros e inscrições no topo dos edifícios evocam os tempos áureos da actividade comercial da ilha e a ausência de uma expressão musical própria de ampla divulgação é algo que surpreende pela negativa. É um constante manhã à noite de piroseiras anglo-saxónicas (êxitos recentes e mais antigos) com direito a incondicional adesão das pessoas que logo trauteam e dão ao pé. Os programas da rádio local, prenhes de risinhos irritantes e intervalados com constantes malhas publicitárias, esses, então, são mesmo de ir às cordas. Ao pé deles, as boçais manhãs na Comercial e na RFM não passam de refrescante bálsamo…

Mas deixemos a ruidosa actualidade e retornemos à anciã Cebu quinhentista para, desta feita, assistir à chegada, oriundo das selvas do Bornéu, de um guerreiro de monta, Lapu-Lapu de seu nome, a quem o rajá Humabon – provavelmente com medo da concorrência – atribuiria vasta região que incluía a ilha Opon, mais tarde designada de Mactan. Hamubon provara antes ser um monarca providente ao receber de forma amistosa a armada de Fernão de Magalhães. Na verdade, o cebuano assim procedia porque julgava estar perante representantes do Rei de Portugal, cuja fama ali chegara também. Temor, de resto, plenamente justificado no que ao navegador de Sabrosa e aos homens sob o seu comando de nacionalidade portuguesa dizia respeito. Pigafetta ilustra bem o facto, transcrevendo uma frase dos anais “Kota Raya Kita” que nos dão conta do alerta feito por um mercador local junto do seu monarca: “Tem cuidado com o que fazes ó rei, pois estes homens são aqueles que conquistaram Calecute, Malaca e grande parte da Índia. Se lhe deres uma boa recepção e os tratares bem só ganharás com isso. Se, pelo contrário, os tratares mal, far-te-ão o que fizeram com Calecute e Malaca”. Magalhães, por seu turno, acreditava ser senhor absoluto de todos aqueles domínios o anafado rajá Humabon, embora, na verdade, a estratégica localização de Mactan (onde era possível interceptar os navios que se acercavam de Cebu) desse a Lapu-Lapu um trunfo acrescido.

Na batalha travada num mangal de Mactan, a 27 de Abril de 1521, uma centena de soldados ibéricos, claramente em desvantagem frente aos guerreiros de Lapu-Lapu, sofreria pesada derrota e Magalhães viveria aí as suas últimas horas; as derradeiras dos vinte dias que passou naquele arquipélago. Em sua homenagem, mandariam erguer as autoridades coloniais espanholas oitocentistas, no exacto local da refrega, na Punta Engaño, uma torre encimada por um obelisco com os seguintes dizeres inscritos nas quatro faces: “A Hernando de Magallanes”; “1866 Reinado Ysabel II”; “Glorias Españolas”; “Sendo Gobernador Don Miguel Creus”. Faz também agora parte deste espaço, conhecido como “santuário de Mactan”, uma estátua de bronze de vinte metros de Lapu-Lapu na sua habitual pose aguerrida. A placa informativa evoca o seu estatuto de herói nacional: “Aqui, a 27 de Abril de 1521, Lapulapu e os seus homens repeliram os invasores espanhóis, matando o seu líder Ferdinand Magellan. Lapulapu foi o primeiro filipino a repelir uma agressão estrangeira”. Pese o teor nacionalista da placa, os filipinos de hoje não encaram Magalhães como “o europeu mau” que ali chegou para explorar os indígenas das ilhas; pelo contrário, há até quem se sinta culpado por ele ter sido morto naquela terra. Como comentava a investigadora citada no início desta crónica: «Não se matam homens brilhantes».

No momento em que visitei o “santuário de Mactan”, sofria todo aquele espaço profundas obras de restauro tendo em vista as celebrações que ali terão lugar em 1521 para assinalar os 500 anos da primeira viagem de circum-navegação. Resta acrescentar que, após a batalha de Mactan, Humabon e Lapu-Lapu reataram a habitual amistosa relação, e o último decidiu regressar ao Bornéu natal, “acompanhado por três das suas mulheres e dezassete dos seus melhores guerreiros”.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *