O fundamentalismo islâmico em África
Como vem repetindo o Papa Francisco, a guerra é uma loucura, onde não há vencedores, a não ser os fabricantes de armas. A chamada guerra “preventiva” contra o terror, após os atentados do 11 de Setembro de 2001, gerou mais sofrimento, morte e a destabilização das relações entre os povos e nações. O Médio Oriente continua a ser massacrado por ódios e conflitos. Na sequência desses eventos, surgiu o autoproclamado Estado Islâmico (ISIS), na Síria e no Iraque. A violência e o terror alastraram para a Europa, com inúmeros atentados terroristas, e, mais ainda, para vários países africanos, onde encontraram terreno fértil para se implantar, devido às precárias condições políticas e socioeconómicas. Vários povos africanos esquecidos pela agenda mediática choram devido à cegueira fundamentalista. Caso, particularmente dramático, é o da Nigéria, o país mais populoso de África.
O ISLÃO EM ÁFRICA
A presença do Islão em África vem dos tempos de Maomé. Segundo a narrativa tradicional, devido à perseguição, um grupo de seguidores de Maomé fugiu de Meca em 614 e procurou refúgio no reino cristão de Aksum (Axum, na Etiópia). Quando Maomé se tornou o senhor de Meca, a maioria regressou, mas as sementes do Islão estavam lançadas. Mais tarde, depois de Maomé, mas ainda no Século VII, o Norte de África foi conquistado. E ao longo dos séculos, pela conversão ou pela conquista, o Islão foi-se espalhando, tornando-se a religião principal do Norte de África, do Corno de África, da Costa do Índico e da África Ocidental, estando a tornar-se cada vez mais presente onde antes quase não existia. A maioria dos muçulmanos em África é sunita. Porém, o Islão seguido pela maioria das populações africanas é um Islão profundamente influenciado pelos costumes e crenças tradicionais e há uma grande variedade de práticas e de tradições, consoante a região. Em África, o Islão tem sido constantemente reformulado de acordo com as condições económicas e sociais prevalecentes. Esse pendor tradicional facilitava a convivência com gentes de outros credos.
Lembro-me de que em Moçambique (nos anos de 1970) cristãos e muçulmanos tinham relações pacíficas e respeitosas. Os muçulmanos participavam nas festas cristãs e retribuíam o convite para as suas festas. Não havia animosidade e muito menos violência entre uns e outros. Como todos os muçulmanos, eles reconheciam Jesus como um profeta, e isso facilitava o convívio. E a cada passo, encontrávamos imãs de cofiô (peça com que os muçulmanos cobrem a cabeça) e com a veste branca. 0s muçulmanos de Moçambique identificavam-se mais por uma série de tradições do que por um conhecimento comprometido das suas crenças e leis. Contudo, foram aparecendo grupos cada vez mais influentes e poderosos que se dedicam a viver e a propagar um Islão mais radical.
Islão, como a própria palavra indica, é submissão incondicional a Alá e ao seu mensageiro, Maomé. O Islão envolve todos os aspectos da vida humana, sejam eles religiosos, sociais, económicos ou políticos. Daí que, em muitos dos países muçulmanos, a Xaria, ou lei islâmica, seja a base de toda a legislação que regulamenta todos os aspectos da vida da comunidade e do indivíduo. Reconhecendo Alá como o único Deus e o Senhor supremo do universo, o Islão propõe-se levar todos os povos à submissão a Alá, seja pela conversão ou pela força das armas.
Seguindo as pegadas de Maomé, o Islão tem tido sempre duas dimensões, a religiosa e a política. E, por isso, muitos dos movimentos políticos são motivados e fundamentam-se em atitudes religiosas. Assim foi com o autoproclamado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS, ou simplesmente Estado Islâmico, o El), que apareceu em 2004 no Iraque e que se declarou Califado em 2014, tendo como propósito estabelecer um Estado Islâmico, baseado na lei Xaria executada à letra. Em pleno Século XXI, o El procurou estabelecer uma sociedade à maneira da sociedade árabe do Século VII, usando a violência e o terror contra todos aqueles que eram ou queriam ser diferentes. O El estabeleceu o ideal e serviu de modelo para vários grupos islâmicos em África. Os mais notórios são o Boko Haram na África Ocidental e o AI-Shabaab na Africa Oriental (principalmente na Somália).
Boko Haram, que significa “a educação ocidental é proibida”, apareceu no Nordeste da Nigéria e está presente no Chade, Níger, Norte dos Camarões e Mali. Foi fundado em 2002 por Mohammad Yousuf. De 2009 a 2021, o grupo foi chefiado por Abubakar Shekau. 0 grupo combate a ocidentalização da sociedade nigeriana, considerando-a a causa da corrupção da cultura nigeriana e propondo-se estabelecer na Nigéria um El. O Boko Haram tem cometido muitas atrocidades, tendo matado milhares de pessoas em ataques contra os cristãos, as forças de segurança, as escolas, os políticos e os muçulmanos considerados como colaboradores. O Boko Haram orienta-se para a criação de um El puro, governado pela lei Xaria. 0 grupo justifica e fundamenta a sua actividade de terror nas suas crenças religiosas, considerando os outros muçulmanos como hipócritas e falsos e vendo todos os outros grupos religiosos como infiéis (kafir) que devem ser combatidos.
Na Somália, apareceu o grupo militante AI-Shabaab que espalhou a sua influência a vários países da África Oriental. Mantendo laços com a Al-Qaeda, também eles querem estabelecer um El, usando o terror para se impor e levar as populações à submissão total. No Norte de Moçambique, em Cabo Delgado, há também um grupo chamado AI-Shabaab, mas que não está ligado ao AI-Shabaab da Somália, embora use métodos semelhantes e se proponha também estabelecer um El. 0 grupo da Somália surgiu em 2000, enquanto o de Moçambique só foi criado em 2017. Tanto o Boko Haram como o Al-Shabaab justificam a sua violência com as suas crenças religiosas, tentando impô-las pela força das armas.
IGREJA NA NIGÉRIA JÁ CONTA COM MUITOS MÁRTIRES
A Nigéria é o país mais populoso de África com cerca de 223 milhões de habitantes. O Islão entrou no que é hoje a Nigéria no Século IX, através das rotas comerciais transarianas. Os muçulmanos constituem cerca de cinquenta por cento da população e ocupam principalmente o Norte, que é maioritariamente governado pela lei islâmica, a Xaria, enquanto o resto do País é governado pela lei secular.
O Cristianismo fez a sua entrada com a chegada dos portugueses, no Século XV. Todavia, o impacto da primeira evangelização foi reduzido e, por volta do Século XVII, tinha mais ou menos desaparecido. Em meados do Século XIX, a evangelização foi reiniciada e, em 1950, foram estabelecidas as arquidioceses de Lagos, Kaduna e Onitsha. Os grandes evangelizadores foram a Sociedade das Missões Africanas na zona de Lagos (1865), os Espiritanos e a Sociedade de São Patrício (1932), principalmente em terra Ibo.
A Igreja Católica esteve profundamente envolvida na guerra civil entre as forças federais e os lbos do Biafra (entre 1967 e 1970). Em consequência desse envolvimento, depois da guerra, cerca de quinhentos missionários foram expulsos e, até meados dos anos 70, padres estrangeiros não eram aceites na Nigéria.
“No período do pós-guerra, surgiram numerosas organizações leigas que complementaram os esforços missionários da Igreja Católica, o seu trabalho caritativo e que, cada vez mais, deram à Igreja um sabor indígena e africanizado, incluindo o Grémio de Santo António, a Sociedade de São Judas, a Legião de Maria e a Cruzada do Rosário. As sociedades laicas constituíram um espaço importante de diálogo interno e de interface externa entre a Igreja e os seguidores das tradições religiosas indígenas e, através delas, certos conceitos e tradições foram aceites no seio do Catolicismo (por exemplo, a aceitação do título político-religioso lgbo ozo), os católicos foram ensinados a ser acolhedores para com os seguidores das religiões tradicionais, dando ênfase ao perdão em vez da intolerância, e os termos ‘pagão’ e ‘idolatria’ foram abandonados nas discussões sobre os adeptos das religiões tradicionais” (https://rpl.hds.harvard.edu/faq/catholicism-nigeria).
Hoje os cristãos, cerca de oitenta milhões, constituem 46 por cento da população e vivem principalmente no Sul e no Centro do País. Entre eles, as duas maiores “Igrejas” são a Anglicana e a Católica. Nos últimos anos, a Igreja Católica tem tido um crescimento enorme. Segundo estatísticas do Vaticano, os católicos são cerca de 14,5 por cento da população. No entanto, a influência da Igreja Católica no País é muito maior do que as estatísticas indicam devido à sua presença no Ensino, com várias Universidades, no sector da Saúde e no Serviço Social. Em 1976, o cardeal D. Dominic Ekandem fundou a Sociedade Missionária de São Paulo da Nigéria, que tem os seus membros espalhados por vários países africanos, pela América do Norte, Europa e Caraíbas.
Contudo, a Nigéria é um dos países do mundo onde os cristãos são mais perseguidos, principalmente no Norte do País. Há cada vez mais intolerância religiosa. A perseguição vem principalmente de grupos extremistas, como o Boko Haram e as Milícias Fulas. O Boko Haram é um movimento radical islâmico que rejeita a cultura ocidental e que pretende impor a lei islâmica, usando para isso a violência. Os fulas são nómadas ou seminómadas que se dedicam à pastorícia e que entram em conflito com as populações rurais que se dedicam à agricultura. Embora a maioria dos Fula seja muçulmana, à procura de pastos, podem atacar mesmo comunidades islâmicas. Muitas vezes, esses conflitos têm também motivações religiosas. Tanto o Boko Haram como as Milícias Fulas espalham-se para além das fronteiras nigerianas, estando activas também no Mali, Camarões, República Democrática do Congo e na República Centro-Africana. Desde o começo da insurgência do Boko Haram em 2009, mais de cinquenta mil cristãos foram mortos, fazendo da Nigéria o país onde há mais cristãos mártires.
“A perseguição que os cristãos enfrentam na Nigéria é extrema e muitas vezes brutalmente violenta, uma vez que os militantes islâmicos e os bandidos armadas atacam com crescente impunidade. Esta situação afecta sobretudo os crentes que vivem no Norte, de maioria muçulmana, e na Faixa Média, mas está também a alastrar ao Sul. Embora todos os civis estejam sujeitos a ameaças e violência, os cristãos são muitas vezes especificamente visados por causa da sua fé. O Boko Haram e a Província da África Ocidental do Estado Islâmico (ISWAP), por exemplo, querem eliminar a presença do Cristianismo na Nigéria. Na Nigéria, são mortos mais cristãos por causa da sua fé do que no resto do mundo em conjunto – catorze por dia, em média. Os homens e os rapazes são muitas vezes especificamente visados por grupos extremistas, com o objectivo de destruir os meios de subsistência e sufocar o crescimento da população cristã. As mulheres e raparigas cristãs no Norte da Nigéria, e cada vez mais a Sul, são vulneráveis à perseguição pela sua fé e género – são frequentemente alvo de rapto, agressão sexual e casamento forçado por grupos armadas. Os cristãos são despojados das suas terras e dos seus meios de subsistência e muitos vivem como pessoas deslocadas internamente ou como refugiados” (https://www.opendoorsuk.org/persecution/world-watch-list/nigeria/).
Desde 2010, dezoito mil igrejas e duas mil e 200 escolas foram queimadas. É bom ter em conta que estes grupos radicais também usam a violência para com os muçulmanos moderados. Assim durante o mesmo período, morreram cerca de 34 mil, em consequência dos ataques islamistas (ver: https://www.vaticannews.va/en/church/news/2023-04/over-50000-christians-killed-in-nigeria-by-islamist-extremists.html).
De verdade, a vitalidade da Igreja na Nigéria está a ser regada com o sangue dos mártires. Que pela sua coragem e fidelidade sejam uma bênção para toda a Igreja e para o mundo.
Pe. José Guedes
In Boa Nova – Atualidade missionária