História da Mariologia

Culto, devoção e estudo

A Mariologia é uma componente da Teologia cristã que se dedica ao estudo da Virgem Maria, desde a sua vida até à interpretação dos diversos dogmas e doutrinas marianos. A sua natureza (a Imaculada Conceição, a Assunção da Virgem, a sua Coroação…), o seu papel na Salvação, como mediadora e co-redentora, as suas advocações ou invocações (Maria Mãe da Igreja, Mãe dos Céus, do perpétuo Socorro, da Esperança, Auxiliadora…), as formas de veneração e culto (mariano, ou hiperdolia), bem como a sua liturgia, são dimensões da Mariologia. Na Igreja Católica, como na Anglicana e nas Ortodoxas orientais, a devoção mariana, logo a Mariologia, está solidamente implantada e dotada de grande importância na Teologia como na espiritualidade.

A Mariologia enquanto conhecimento especializado, como parte da Teologia, só foi individualizada na Idade Média. O primeiro milénio do Cristianismo conheceu Maria, mas sempre uma relação com Jesus, o protagonista quase exclusivo das homilias, tratados, discursos. A Patrística, por exemplo, centrou-se nas grandes controvérsias teológicas de matriz cristológicas, menos em questões marianas, plasmadas muitas vezes em textos apócrifos, como o Protoevangelho de Tiago (início do século III) e a “Vida de Maria”, do monge Epifânio. Mas há que recordar Santo Inácio de Antioquia (morre c. 110), que na sua luta anti-docetista (heresia) aponta para uma doutrina mariológica, afirmando a concepção virginal e autêntica de Jesus por Maria, um dos Mistérios de Deus. Surge, todavia, subordinada à Cristologia.

Uma das notas desta épica é o paralelismo Eva e Maria, Ave Eva, Ave Maria: São Justino (séc. II) segue a linha de Santo Inácio, continuada também por São Irineu de Lião (sécs. II-III) – que desenvolve sobremaneira o plano teológico daquele paralelismo Eva e Maria como redentora – e Tertuliano (que morre em 222), que reforça o sentido salvífico de Maria na redenção do pecado original de Eva…Ave. A patrística seguirá por esta via antitética, cada vez com mais detalhe e discussão, numa significação soteriológica (salvação) crescente e na analogia da relação Maria e Igreja. Mas era ainda uma mariologia cristocêntrica…

O culto e devoção a Maria podemos afirmar que nasce em finais do séc. IV, na sequência da liberdade de culto introduzida por Teodósio (380), que convocou um concílio mais tarde, em 431, em Éfeso – pretenso local da vida, morte e Assunção da Virgem – onde se declarou a maternidade divina de Maria, autorizando-se então o seu culto como Mãe de Deus (Theotokos). A arte ajudará depois na difusão da figura, a partir de uma teologia crescente, embora ainda subordinada à Cristologia.

 

Mariologia medieval

Na Idade Média, após os dogmas cristológicos serem definidos, a piedade marial ganhou um maior espaço e autonomia teológica. Para tanto bastou o surgimento do Rosário, mas também das inúmeras devoções marianas e das revelações privadas que ocorreram a vários santos. O Tratado da Santíssima Virgem, de São Bernardo de Claraval (morreu em 1153) é a obra mariológica que marca este período. As catedrais dedicavam-se então a Santa Maria, como também as nações que nasciam, como Portugal. Maria ganhava uma expressão artística, suportada pela importância teológica crescente. No período medieval surgiram também as grandes controvérsias mariológicas, principalmente no que diz respeito à Imaculada Conceição de Maria. As universidades eram os centros desta discussão acesa entre teólogos franciscanos e dominicanos. Estes últimos tiveram desde sempre uma forte devoção ao Rosário, usando-o no hábito, com todo um histórico devocional mariano desde São Domingos de Gusmão. Mas foram os filhos de Francisco de Assis que mais pugnaram pela defesa da imaculada concepção de Maria, com destaque para o Beato João Duns Escoto. Dotado de subtileza argumentativa e força dialéctica, ficou famoso pela firme defesa da Imaculada Conceição: dizer que Maria não contraiu a mácula do pecado original não só não nega a universalidade da redenção, mas mostra também Cristo como Redentor perfeito, pois uma redenção que inclusivamente preserva do pecado é mais perfeita que a que simplesmente livra dele, uma vez que já foi contraído. A devoção crescente a Maria (e a récita do Rosário) incrementaram os estudos e reflexões mariológicas naquela época.

A devoção à Imaculada Conceição e a importância de Maria na espiritualidade franciscana – afectiva, passional, humilde – são uma das notas importantes da Mariologia medieval. Esta sublinha-se por um desenvolvimento doutrinal que assenta na maternidade divina e na perpétua virgindade de Santa Maria, na sua santidade total e inequívoca, concebidas como verdades pertencentes à Fé. Daí se evoluirá para as prerrogativas marianas, especialmente da Imaculada Conceição, da Assunção, da Mediação e da Realeza de Maria, ampliando e aprofundando os temas e valores recebidos da Patrística, para além da influência do Cristianismo oriental. A piedade mariana era intensa no povo cristão nos fins da Idade Média, mas com algumas manifestações que roçavam a superstição e o sentimentalismo, desvios reducionistas que atiçaram críticas dos Protestantes, mas reforçaram o estudo mais rigoroso e fundamental da Mariologia, de forma a salvaguardar o culto de Maria.

 

Época Moderna

Foi neste período que nasceu a Mariologia Sistemática, num período marcado pela Teologia sistemática. A Reforma Protestante promoveu a eliminação dos santos e um ataque em toda a linha a Maria (salvo algumas excepções, como os Anglicanos). Mas não foi por isso que Maria desapareceu da Teologia, ou do culto universal. Aparece então o primeiro tratado mariano (Francisco Suárez, 1584) e nasceu até o termo “mariologia”, com Plácido Nígido (1602). O período barroco, pós Trento (1545-63), até ao séc. XVIII, será marcado por uma piedade mariana imensa, visível na arte, que aclama e realça a iconografia mariana e a sua conotação com a Igreja renovada. A teologia mariana está agora claramente afirmada e é uma das componentes mais expressivas da Teologia. A Mariologia torna-se devocional, com o Iluminismo racional dos séculos XVIII e XIX, com um maior cunho afectivo, na qual se misturam elementos simbólicos e racionais. Assim, nasce o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort, por exemplo, obra referencial da Mariologia iluminista e que marca a centralidade mariana de muitos institutos religiosos coevos e a espiritualidade da época. Esta marcou muitas das ordens e congregações religiosas, como os Jesuítas, Capuchinhos, Suplicianos, Eudistas, Redentoristas, Monfortinos, entre outras mais antigas, monásticas ou mendicantes. O rosário ganhou uma força ainda maior a partir do século XVI, com destaque para a sua plenitude no século XVIII e a posteriori. A devoção do “de Maio” como Mês de Maria nasceu em Seiscentos, na Itália, a qual se transformou numa forma de piedade corrente no séc. XVIII.

 

Do século XIX aos nossos dias

Pio IX proclamou em 1854 o dogma da Imaculada Conceição de Maria, um século antes de Pio XII fazer o mesmo em relação à Assunção da Virgem em corpo e alma aos céus. A Mediação de Maria foi considerada proclamação dogmática no séc. XX, ao passo que Bento XV, no primeiro quartel daquele século instituiu a festa de “Maria, mediadora de todas as graças”. As Aparições de Lourdes e de Fátima, entre outras, trouxeram forte impulso à Mariologia, que já vinha recebendo forte expressão desde a proclamação do dogma da Imaculada. As festas litúrgicas relacionadas com Maria são fruto também da definição teológica cada vez mais fundamentada e sistemática e da importância da Mariologia.

A Mariologia no século XX é marcada pela sua agregação à Nouvelle Theologie. Nos anos sessenta iniciou-se um movimento de retorno às fontes do Cristianismo (Sagradas Escrituras, Patrística e Sagrada Liturgia), que tem como maiores expoentes Joseph Ratzinger, Hans Urs von Balthasar e Henry de Lubac. A Mariologia assente apenas em argumentos da tradição e do raciocínio escolástico, bem como do seu método dedutivo, torna-se decrépita e é ultrapassada. Regressou-se assim às origens e passou a considerar-se a Virgem Maria como sendo verdadeiramente Senhora, mas também criatura, Mãe de Deus e Mãe do mundo. Apesar da redução de Maria em certos sectores à simples “Maria de Nazaré”, humana mas menos divina, de uma certa desacreditação ou minimalização do seu culto, principalmente nos anos 70, a Mariologia não esmoreceu, muito em parte para continuar o paulatino estudo e fundamentação teológica da figura de Maria.

Há um certo ??? de alguns mariólogos e de muitos fiéis aos grandes tratados marianos antigos, de Montfort, São Bernardo ou de Santo Afonso de Ligório, acreditando alguns que estaremos numa crise da Mariologia. Mas aqueles tratados são hiperbólicos na linguagem, mesmo que verdadeiros e eficazes para o cultivo da fé cristã católica.

Devemos estar atentos às orientações de Maria, mediadora, como ela nos demonstrou nas bodas de Caná. É preciso que fiquemos atentos à sua voz atenta, como modelo de vida cristã, como refere a Mariologia actual. São Francisco de Assis dizia: «preguem, mas se necessário usem palavras». O testemunho de vida é a pregação mais eficaz. Neste sentido, afirma a Mariologia moderna, a Virgem Maria é o modelo a ser imitado, porque não imita a si mesma, mas a Deus. A Mariologia continua viva, suscita atenções e aponta modelos, caminhos, com Maria.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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