Arquitectos chamados ao Sagrado
Notre-Dame renascerá das cinzas. O primeiro-ministro de França anunciou uma competição internacional de arquitectura para se redesenhar e reconstruir as partes danificadas da Catedral de Notre-Dame, após o incêndio do passado dia 15 de Abril. Édouard Philippe disse que a competição dará à catedral «uma torre adequada às técnicas e desafios do nosso tempo».
Foram já muitos os arquitectos e artistas que manifestaram o seu desejo de participar na revitalização da catedral parisiense, que consegue tocar até os corações dos mais incrédulos.
O Presidente Emmanuel Macron prometeu à nação francesa que a Notre-Dame seria reconstruída – ficando ainda «mais bonita do que antes» – dentro de cinco anos.
A catedral surgiu no passado impulsionada por D. Maurice de Sully pouco depois de se tornar bispo de Paris em 1160. Foi construída ao longo de dois séculos, iniciando-se os trabalhos em meados do século XII. A torre, com mais de noventa metros de altura, só foi adicionada em meados do século XIX, durante um grande projecto de restauração concluído pelo arquitecto Eugène Viollet-le-Duc.
Édouard Philippe explicou aos jornalistas, após uma reunião de gabinete dedicada ao incêndio, que «a competição internacional permitirá perguntar se devemos recriar a torre, tal como foi concebida por Viollet-le-Duc, ou, como é frequente na evolução do património, se devemos dotar a Notre-Dame com uma nova torre. Este é obviamente um enorme desafio, uma responsabilidade histórica».
A Catedral de Notre-Dame foi inscrita na Lista de Património Mundial da UNESCO em 1991.
Stéphane Bern, o representante cultural do Governo, disse que os donativos que têm recebido rondam os 880 milhões de euros. Na ocasião, destacou alguns dos nomes que prontamente contribuíram, como a Apple, o grupo energético Total e magnatas que detêm marcas francesas de renome, entre elas a L’Oréal, Chanel, Dior e Louis Vuitton. Muitas outras pessoas em nome pessoal, tanto de França como do resto do mundo, também têm feito doações.
INTERESSE DE GRANDES NOMES DA ARQUITECTURA
A Catedral de Notre-Dame é a mais famosa das catedrais góticas da Idade Média. Talvez por isso, desde que a competição internacional foi anunciada, muitos manifestaram-se motivados em apresentar propostas para as estruturas danificadas pelo fogo. Surge pois agora a oportunidade da catedral ser dotada de linhas contemporâneas, em termos de arquitectura e de novas tecnologias na arte de construção, fundindo-se estas nos traços góticos centenários.
Norman Foster (Foster + Partners) entrou na competição. O arquitecto é bem conhecido na nossa região, com obras icónicas como o “Hong Kong & Shanghai Bank Headquarters” (HSBC), na vizinha região especial, entre muitos outros projectos.
De acordo com uma entrevista publicada no The Times, Foster apresentou a sua visão de um novo tecto «leve e arejado» para a catedral francesa. O espaço anterior do sótão datava do século XII e foi apelidado de “A Floresta”, pois continha um emaranhado de mil e 300 estruturas de madeira, cada uma proveniente de um carvalho único. Daí que o fogo também tenha rapidamente tomado graves proporções.
A visão de Foster exige a instalação de uma cobertura de vidro – em arco para imitar o telhado original de madeira – com nervuras e suportes de aço leves. A nova torre poderá ser construída em vidro e aço, podendo incluir uma plataforma de observação na sua base. «Em todos os casos, as propostas usam as mais avançadas tecnologias de construção contemporâneas», referiu Foster ao The Guardian. «Nunca reproduzir o original. Em Chartres, as madeiras do século XII foram substituídas no século XIX por uma nova estrutura de ferro fundido e cobre. A decisão de realizar um concurso para a reconstrução de Notre-Dame deve ser aplaudida porque é um reconhecimento da tradição de realizar novas intervenções» concluiu.
O plano de modernização do arquitecto inglês gerou uma reacção imediata. Houve utilizadores de redes sociais que compararam a proposta de renovação da catedral a uma loja da Apple ou à cúpula do Reichstag em Berlim. Várias pessoas sublinharam que a ideia de “inundar” o interior da catedral com luz poderá retirar a presença da luz proveniente dos seus vitrais.
O LEGADO DE UM HOMEM
A catedral tem aproximadamente 128 metros de comprimento e doze metros de largura na nave. O seu plano cruciforme, a nave elevada, o transepto e a torre, foram inspirados na arquitectura romanesca do século XI, embora os seus arcos pontiagudos e abóbada nervurada sejam estritamente góticos.
Embora o financiamento da obra seja crucial, a tecnologia pode ser a chave para tornar possível uma restauração precisa. É aqui que entra o saudoso Andrew Tallon, um historiador de arte, pioneiro e pai de quatro filhos. Tallon morreu a 16 de Novembro de 2018, vítima de cancro, aos 49 anos de idade. Embora não esteja mais entre nós, o seu trabalho parece ser agora mais vital do que nunca.
Tallon foi na verdade um modelador histórico e a sua análise sobre o passado pode ser a chave para o futuro da Notre-Dame. O trabalho do pesquisador envolveu o uso de tripés de laser que constroem uma rede de pontos de informação em todas as superfícies do interior de um edifício. Tallon mapeou mais de 45 edifícios religiosos históricos. O seu trabalho sobre Notre-Dame recebeu grande atenção num programa especial da National Geographic em 2015.
Notre-Dame foi uma fonte duradoira para para Tallon. «Eu tinha este pequeno guia e anotei-o como um doido», contou, tendo descrito a época em que frequentou o quarto ano da Universidade e morou em Paris: «Eu ansiava por saber as perguntas habituais. Quem fez esta obra? Como fizeram tudo isto? Poderia eu subir a uma das passagens?».
Muitos anos depois, já como professor do Vassar College, Tallon cumpriu o desejo de realizar um estudo aprofundado sobre a catedral. A principal questão colocada por Tallon foi: o que mais podemos aprender sobre este incrível edifício? «Quando se trabalha com edifícios medievais é difícil ter a impressão de poder dizer-se algo novo. Eles foram estudados e as conclusões registadas há séculos», disse Tallon à National Geographic, acrescentando: «Por isso, hoje em dia, tenho usado tecnologias mais sofisticadas para tentar obter novas respostas sobre estas construções».
A estratégia funcionou. A técnica de Tallon revelou dados novos sobre os primeiros construtores da catedral, incluindo o trabalho extremamente habilidoso que os mesmos realizaram, bem como as imprecisões cometidas durante a obra.
Os mapeamentos registaram com precisão cada peculiaridade da complexa estrutura, tendo-se denotado algumas anomalias. Mil milhões de pontos de dados revelaram que o extremo oeste da catedral está fora de sintonia com a estrutura adjacente. Tallon descrevê-lo como «uma confusão total».
Apesar deste resultado, Tallon ficou maravilhado com a engenhosidade dos construtores, que criaram uma catedral que transcende as suas partes ocasionalmente irregulares.
«Havia um imperativo bíblico, moral, para construir um edifício perfeito, porque as pedras do edifício foram directamente identificadas com as “pedras” da Igreja» – as pessoas que compõem o corpo da Igreja.
«Eu gosto de pensar que este trabalho de mapeamento a laser, e até mesmo alguns dos estudos convencionais que faço, é alimentado por esse importante mundo de espiritualidade», afirmou Tallon, concluindo: «É uma ideia tão bonita!».
O incrível mapeamento preciso do historiador tornar-se-á crucial quando tiver início o trabalho de reconstrução da catedral.
Miguel Augusto
com Architizer, The Guardiane The Architect’s Newspaper