Ferdinando Severi, franciscano entre achéns

O poder da persistência

Quando o conheci, em 2002, o franciscano Ferdinando Severi era o único religioso católico numa província esmagadoramente muçulmana. A região especial de Aceh, Samatra, Indonésia, denominada “varanda de Meca”, vivia atribulada por um movimento de guerrilha que pugnava pela independência. Voltei a estar com ele em meados de 2014. Continuava igual a si mesmo.

Energético e comunicativo, Ferdinando Severi disfarça naturalmente os 80 anos que já conta no currículo. Ninguém lhos dá apesar do cabelo branco-neve que lhe coroa um rosto expressivo.

Estamos junto à igreja do Sagrado Coração, construída pelos holandeses na década de 1930 junto ao rio que atravessa a cidade. Local estratégico foco da cobiça dos militares que, após a guerra, expropriariam as instalações adjacentes onde funcionava um convento de freiras. Ainda hoje continuam aí aquartelados. E como se não bastasse, aproveitam também para estacionar os veículos no pátio da casa paroquial. «São da polícia militar. Está de visita à cidade uma personalidade importante e eles acompanham-no». Ao padre Severi – nota-se – não lhe incomoda minimamente a vizinhança.

Natural de Cesena, província de Forli, não muito longe de Ravena, Ferdinando teve uma infância algo atribulada. «O meu pai, que pertencia às milícias fascistas, foi abatido pelos partisans numa emboscada quando eu tinha apenas seis anos». Em casa estavam mais sete irmãos e a mãe. Se já eram pobres, mais pobres ficaram. Estávamos em 1943 e, «para diminuir as bocas», na expressão de Severi, «fui enviado aos frades franciscanos em Longiano». Era sua intenção estudar para médico, não fosse ter-se intrometido a vocação. Aos 26 anos era ordenado sacerdote na bela igreja de Santo António de Pádua. «Ou de Lisboa», corrige. «Essa é a igreja dos portugueses e está sob a alçada da nossa congregação, tal como a igreja de Assis». Rimini seria o seu destino inicial, durante quatro anos, «como assistente, e depois como pároco». A anteceder o Oriente, seguir-se-iam três anos em Ravena. Agora, visita a Itália de cinco em cinco anos. «Mas não gosto, pois é aqui que está o meu trabalho».

«Carissimi amici e benefatorri» – assim se inicia uma carta que anualmente, pela altura do Natal, o frade Ferdinando envia aos seus benfeitores e benfeitoras residentes na Itália, mais de trezentos. São eles que tornam possível uma série de actividades de solidariedade que tem em curso. Das quais se destacam intervenções cirúrgicas, plásticas e ortopédicas, nos mais desfavorecidos, maioritariamente crianças, que Severi recolhe pelas recônditas aldeias de província, conduzindo-os depois ao centro de reabilitação Harapanjaya sedeado em Siantar, a 120 quilómetros de Medan, instituição dirigida pela irmã holandesa Jeanette van Passen já com 30 anos de existência. São também holandeses os médicos que, em regime de voluntariado, se deslocam quatro vezes por ano a Samatra para operar. «Só temos de lhes pagar a passagem aérea», esclarece o frade.

Entre os casos clínicos mais comuns entre as crianças estão os pés tortos, as queimaduras graves e o «lábio leporino», doença bastante comum nesta região do planeta. Que requer uma operação não tão complicado quanto isso. «Em dez anos fiz operar mil e 300 crianças». Há seis anos, por exemplo, Ferdinando levou a Siantar um médico holandês que em «cinco dias operou 30 crianças».

O custo é muito mais baixo do que se possa imaginar. «Com a ajuda desses cirurgiões, cada operação fica-nos por apenas um milhão de rupias, no caso de cirurgia plástica, e milhão e meio, no caso de cirurgia ortopédica». Apesar dos zeros, soma bastante acessível – um milhão de rupias são apenas 800 patacas. Não deixa, no entanto, de ser uma fortuna para as populações locais. Severi complementa toda esta informação com fotos (algumas delas bastante chocantes) de crianças antes e depois da operação.

E se há crianças que precisam de correcções no rosto e nos pés, velhos há que necessitam de próteses ou de uma operação às cataratas. A todos Severi atende.

SEPARAR AS ÁGUAS

«Posso fazer um trabalho apostólico para com os fiéis cristãos, que vivem na diáspora e os locais, desenvolvendo simultaneamente uma actividade social para com os muçulmanos». Esta, a filosofia do franciscano. Um trabalho que não lhe deixa um minuto de descanso. Mas reserva sempre tempo para fazer as honras da casa a um visitante. Severi não hesita em conduzir-me pela cidade a ajudar-me nas minhas averiguações. Num jipe de assistência social que no dia seguinte conduziríamos pelas artérias da cidade em busca de um saco de açúcar de 50 quilos. Não foi fácil de encontrar. Os camionistas estavam em greve. «Exigem escolta militar, pois frequentemente são taxados ao longo do percurso». Anteriormente essa forma de extorsão era atribuída aos separatistas islâmicos, embora os seus simpatizantes alegassem ser esse mero argumento utilizado pelo exército para denegrir a verdadeira actividade dos rebeldes.

«Hoje vamos visitar os leprosos, levamos-lhe um saco de açúcar». Severi associa os actos às palavras. Por isso, uns minutos depois estamos numa aldeia nos arredores da cidade. Vivem aí trinta e duas famílias, das quais 27 pessoas são leprosos, já não contagiosos. E lá estão os homens e mulheres sem os dedos das mãos, dos pés. Os filhos, equipados a rigor, preparam-se para mais um jogo de futebol. Têm o ar mais saudável deste mundo. Do Governo os leprosos – ostracizados devido à sua condição – recebem uns quantos quilos de arroz por mês. É tudo. Complementem a sua subsistência com as ostras recolhidas no leito do rio e com a venda dos ovos e galinhas criadas nos quintais.

«Infelizmente», comenta Ferdinando, «entre a maioria das pessoas está ainda instalada a leprofobia. E isto, quando a tuberculose é bem mais perigosa». A lepra já não é a praga que outrora aterrorizava populações inteiras. Detectada e medicada a tempo é perfeitamente curável em escassos meses. A partir daí deixa de ser contagiosa. Medicamentos como o Lamprene, o Dapsone, mas sobretudo o Rifampicin mostram-se eficazes. Toda esta informação adquiriu-a Severi nas Celebes, onde estudou numa escola de paramédicos. Seguir-se-ia a prática em Kutacane, já em Samatra, onde esteve quatro anos a curar leprosos. Actualmente estão sobre a sua responsabilidade cinco leprosarias. Nalgumas delas mandou instalar luz eléctrica, «para que possam remendar as suas redes à noite».

 

DEDICAÇÃO E PERSISTÊNCIA

Em 1968 estabeleceram-se na Indonésia os franciscanos de Bolonha, «frati, franciscani conventuali della provincia di Bologna». Mais precisamente em Medan, importante cidade de Samatra. Três sacerdotes, no início. Hoje, passados 33 anos, do seminário que entretanto foi construído saíram algumas dezenas de frades. Todos de etnia bataque, da região do lago de Toba ou das montanhas de Karo. Seis casas religiosas surgiriam nesse mesmo período de tempo. Quatro na ilha de Samatra, outra em Jacarta e uma em Atambuo, Timor Ocidental.

Ferdinando veio para Banda Aceh porque precisavam de padres. «Estou aqui há 24 anos». Dos 43 que tem de Indonésia. O restante tempo passou-o em Jacarta e Medan. Mas sobre estas coisas não lhe interessa falar. Quer é discutir o trabalho que agora faz.

E nessa sua actividade esforça-se ao máximo por manter boas relações com as autoridades locais. Sempre ajuda a «dissipar muitas das ideias feitas em relação a nós cristãos». O franciscano refere-se aos rumores que correm em Banda Aceh de que «os católicos odeiam muçulmanos» e tudo o que «os padres querem é convertê-los».

Inicialmente as autoridades mostraram-se desconfiadas com o seu trabalho. Tentaram mesmo afastá-lo da cidade, escrevendo a Jacarta exigindo a sua transferência. O bispo de Medan saiu de imediato em sua defesa. «Acusavam-me de estar a provocar confusão nas pessoas e afirmavam que tudo não passava de uma estratégia para angariar católicos nas aldeias», diz. Para demonstrar o quão estavam errados, Ferdinando Severi levou os seus acusadores a Siantar e demonstrou-lhes que o seu trabalho era meramente social, «uma manifestação de verdadeiro amor cristão sem qualquer proselitismo».

Como que a comprovar as suas palavras, chegam visitas. Duas professoras de uma escola, dinamizada por Severi, situada nos terrenos concedidos pelos militares para assim se redimirem das expropriações. Uma delas é de etnia chinesa, católica, a outra achém, muçulmana. «Estudam nessa escola 400 alunos».

 

CONVIVER COM A SHARIA ISLÂMICA

Ao longo destes anos foram muitos os desafios. O ano 2000, por exemplo, foi particularmente conflituoso em Banda Aceh, com intensa actividade bélica entre a guerrilha e o exército. «Em média apareciam cinco cadáveres por dia, com sinais de graves torturas. Nenhuma das partes em conflito mostrava vontade de chegar a um compromisso». A extorsão, o incêndio de edifícios públicos e a troca de disparos frequentes paralisavam os transportes. Populações inseguras desciam das montanhas. A elas socorria o franciscano, levando-lhes leite. À guerra juntaram-se as cheias que submergiram as ruas da cidade. Metro, metro meio de água. «Graças a Deus a nossa casa e a escola foram poupadas e puderam servir de asilo a muitas famílias desalojadas e até mesmo a pacientes do hospital militar que eram para aqui transferidas», recorda. O pior de todos os desafios seria, contudo, o devastador tsunami de 2014 que ceifaria a vida de milhares de achenenses, entre os quais muitos cristãos.

Dos mil e 400 católicos recenseados na província de Aceh (70 por cento deles de etnia chinesa), a maioria concentra-se nos centros urbanos da costa oeste – Lhokseumawe, Takengon – e da costa leste – Meulaboh, Sabang, na ilha de Weh. Bataques e ilhéus de Nias completam os restantes 30 por cento. «Uma vez por mês desloco-me a esses locais para rezar missa, pois aí estão as igrejas».

E se para estrangeiros existe liberdade religiosa, o mesmo não se passa para os nativos. «É-lhes interdito serem cristãos ou de outra qualquer religião». Está mesmo em vigor a sharia islâmica. Essa «aplicação feroz da máxima: olho por olho, dente por dente» reduz a liberdade religiosa dos muçulmanos, não concede qualquer direito às mulheres e contribui para isolar ainda mais, económica e culturalmente, a província do resto da Indonésia. Os fanáticos utilizam-na para controlar o poder. Os achéns, no geral, sobretudo os intelectuais, não a subscrevem. Mas não tem coragem de falar, expressar o seu desacordo. «É perigoso opor-se aos fanáticos que alegam receber o poder directamente de Deus».

Severi lembra isso na carta que envia anualmente aos benfeitores. Concluindo que a ajuda aos muçulmanos mais necessitados é «o vosso e o meu testemunho com um significado particular, sobretudo nesta época de tensão entre cristãos e muçulmanos».

Joaquim Magalhães de Castro

em Banda Aceh

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