ENCÍCLICAS PAPAIS

ENCÍCLICAS PAPAIS

Mudam-se os tempos

As Encíclicas dos Papas mudaram muito nos últimos séculos. Geralmente ocupavam uma página, hoje têm uma centena ou mais de páginas; antes abordavam com frequência problemas específicos de relações internacionais, hoje tratam sobretudo da relação com Deus ou de exigências da vida cristã. Principalmente, a linguagem das Encíclicas mudou radicalmente!

A mudança aprecia-se logo nos títulos. Por exemplo:

Quam Aerumnosa(quão miserável, Leão XII em 1888); Gravissimas(gravíssimas, Leão XIII em 1901); Acerbo nimis(intensamente amargo, Pio X em 1905); Vehementer Nos(com todo o vigor, Pio X em 1906); Gravissimo officii munere(grave dever da nossa missão, sobre a perseguição em França, Pio X em 1906); Une Fois Encore(novamente acerca da perseguição em França, Pio X em 1907); Lamdudum(acerca dos excessos e crimes cometidos em Portugal contra a Igreja, Pio X em 1911); Lacrimabili statu(numa situação que faz chorar, Pio X em 1912); Iniquis afflictisque(situação aflitiva de iniquidade, Pio XI em 1926); Acerba animi(com a alma amargurada, Pio XI 1932); Mit brennender Sorge(com uma inquietação ardente, Pio XI em 1937); Ingravescentibus malis(os males que pioram de dia para dia, Pio XI em 1937); In multiplicibus curis(entre as múltiplas preocupações, Pio XII em 1948); Ingruentium malorum(perante os males que se levantam, Pio XII em 1951); Luctuosissimi eventus(acontecimento tremendamente mortífero, Pio XII, em 1956); Datis nuperrime(recentíssima carta, acerca da perseguição na Hungria, Pio XII em 1956).

Em contrapartida, os títulos recentes costumam ser um anúncio da bondade de Deus e um convite à alegria. Podem dar-se muitos exemplos – desde a Gaudium et spes(as alegrias e esperanças, do Concílio Vaticano II, em 1964) até João Paulo II, Bento XVI, ou o Papa Francisco –, mas alguns títulos chegam para apreciar o contraste:

Deus caritas est(Deus é amor, Bento XVI em 2005); Spe salvi(salvos na esperança, Bento XVI em 2007); Caritas in veritate(amor na verdade, Bento XVI em 2009); Evangelii gaudium(alegria do Evangelho, Exortação Apostólica de Francisco em 2013); Lumen fidei(luz da fé, Francisco em 2013); Laudato si’(louvado sejas, Francisco em 2015); Amoris laetitia(a alegria do amor, Exortação Apostólica de Francisco em 2016); Gaudete et exultate(alegrai-vos e exultai, Exortação Apostólica de Francisco em 2018).

Não é preciso completar a lista para demonstrar a diferença. A mudança de linguagem é tanto mais flagrante quanto o conteúdo apresentado pela Igreja permaneceu o mesmo. Evidentemente, o que mudou foi sobretudo o mundo em que vivemos.

É fácil encontrar um paralelo na vida de Jesus. Somos muitas vezes surpreendidos pela delicadeza da sua compaixão, quando esperávamos uma crítica do mal; outras vezes ficamos admirados com a severidade das suas palavras e dos seus gestos, quando esperávamos um tom mais diplomático.

Esta flexibilidade de estilo fazia muita confusão aos fariseus: «Por que é que os teus discípulos não jejuam?» (Mt., 9, 14). Os Evangelhos falam-nos dos jejuns de Jesus, duros e prolongados, mas também das festas a que assistiu. Para um fariseu, isto não faz qualquer sentido.

O próprio Jesus se queixava daqueles que não conseguiam acompanhar os tempos:

«A quem hei-de comparar esta geração? É semelhante às crianças sentadas na praça, que gritam às outras: “Tocámos flauta e não bailastes! Entoámos cantos fúnebres e não choraste!”. Porque veio João, que não come nem bebe, e dizeis: “Tem demónio!”. Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: “É um glutão, amigo de publicanos e pecadores!”. Mas a justiça foi justificada pelas suas obras» (Mt., 11, 16 – 19).

Não é que antes nunca houvesse alegria e boas notícias, e agora só haja motivos de júbilo. Também não é preciso acompanhar a sensibilidade do momento, ao ritmo das crises neuróticas do mundo. A Igreja não tem de ser previsível e de facto, nos tempos que correm, tem uma mensagem totalmente inesperada: Deus ama-nos com loucura.

Talvez a nossa sociedade seja como aquela mulher adúltera, completamente desorientada na vida, apanhada em adultério, que jaz estendida no chão. Nosso Senhor olha-a com ternura, compreende-a e oferece-lhe uma novidade imprevista, que muda tudo: Deus perdoa, defende-a, nunca deixou de a amar. Independentemente do que aconteceu, é hora de recomeçar.

O Papa Francisco preferiu comparar a nossa sociedade como a tragédia dos feridos amontoados depois de uma batalha: «Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha». Talvez o conceito corresponda à imagem da mulher adúltera, mas temperado com a simpatia santa do Papa.

José Maria C.S. André 

 Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

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