Domingo da Cruz e os topasses de Chatigão
A comitiva eclesiástica de François Laynez viu-se obrigada a uma detença de alguns meses travada pelas exigências da comunidade cristã local e a ocorrência das chuvas da época. Nada que molestasse os seus componentes, pois os alimentos dali eram de excelência, o ar puro e a água da melhor qualidade. Salienta o padre Barbier (o cronista do prelado) ser o Português o idioma de uso comum, embora os nativos, “a maioria dos quais escravos”, tivessem dificuldade em aprendê-lo. Cerimónia peculiar a do Domingo da Cruz, meticulosamente seguida pela comunidade portuguesa, que num dos Domingos da Quaresma, aleatoriamente escolhido, partia em procissão liderada pela imagem do Salvador, carregando o lenho pelas ruas do bairro previamente assinaladas com cordame. Recebiam-na os fiéis com cantos lúgubres e penitentes, sobretudo no momento da passagem de Verónica, “a santa favorita dos portugueses”, exibindo o seu santo sudário.
Lamenta o francês não ter sido Chatigão a escolhida, em vez de Hugli, como a sede dos europeus residentes em Bengala. Ademais, aponta como vantagens “a segurança da ancoragem dos navios, a abundância de provisões e mil e uma outras comodidades”, factores que tornavam bastante apetecível o local. Ressalva, no entanto, o facto dos senhores muçulmanos sempre se oporem a que cristãos ocupassem tão estratégico lugar; convinha-lhes, como é óbvio, mantê-los no interior do País. E quando alguém, por motivo de força maior, se via obrigado a dar à costa, “como aconteceu, aquando da minha estada, com um navio inglês e um outro arménio, incapacitados de velejar até Balasore e, por isso, forçados a arribar a Chatigão”, acabava molestado e fortemente taxado: “após ver devorados grande parte dos seus bens” era obrigado a abandonar a carga restante e até o navio, para assim poder salvar a própria pele.
Salienta o padre Barbier a disciplina militar daquela gente cristã, pese a inexistência de hierarquias. Nada que nos deva espantar, pois a esmagadora maioria não passava de simples mercenários. Recorde-se que em 1786 – aquando da invasão do distrito de Chatigão pelas tropas arracanesas comandadas por um general peguano e contra as quais marcharia o major inglês Ellerber – foram contabilizados, entre as forças locais, quinhentos mercenários portugueses, “com mosquetes nas mãos e bonés semelhantes aos dos arménios na cabeça”. No mesmo texto, o padre enumera três tipos de cristãos então existentes naquela parte da Índia. Por um lado, os “pagões recentemente convertidos”; por outro, os comerciantes aventureiros europeus estabelecidos ao longo das margens do Ganges; finalmente, os topasses, ou seja, mercenários portugueses ao serviço do império mogol, congregados principalmente em Hugli, Pipli, Chatigão, Daca, Hossumpur e Rangamati, no Assam. Barbier designa-os de “gens en chapeau”, pois aqueles cobriam a cabeça com um chapéu bastante peculiar, adereço habitualmente usado pelos chefes de família no decorrer das grandes festividades. O padre Barbier aponta a salubridade do clima como outro dos motivos (talvez o principal) para a escolha de Chatigão como sede dessas comunidades, mas também a sua posição geográfica, pois ao ter tais mercenários cristãos, assim à mão de semear, precavia-se o senhorio mogol contra as incursões dos vizinhos arracaneses.
O sacerdote francês traça-nos um vívido retrato dessa gente que deixara estupefactos o bispo Laynez e seus correligionários. Surpreenderam-nos o exótico traje que envergavam: calção de pano listrado, chinelos, camisas e gibões de linho, uma espécie de boné de abas com as extremidades eram voltadas para trás e, em cima de tudo isso, “um roupão que à noite lhes servia de cobertor e durante o dia de traje de cerimónia”. Assim vestidos, “e cada um deles com uma arma na mão”, se apresentaram perante os visitantes estrangeiros, a meia milha do local para se dirigiam. O prelado pediu-lhes que se identificassem e um deles, assumindo o papel de porta-voz, respondeu que “eram soldados desta e daquela companhia” e que ali estavam para escoltar “Sua Senhoria”. Percebeu então o bispo que esse era o comum traje de ordenança e, maravilhado com tão boa vontade e disponibilidade, “deu-lhes a sua bênção”. A estes primeiros soldados seguiram-se os respectivos capitães e vários outros oficiais, “todos de boa figura e assinalável estatura”. Devotamente beijaram a mão do bispo e com todo o cuidado escoltaram-no até ao seu destino.
Nesse mesmo ano (1713) o cronista jesuíta visitou a cidade de Daca, “a vinte e quatro graus de latitude norte”, e não destaca, como seria de esperar, a imponência e beleza dos seus edifícios dos khans, antes a conveniência dos rios que faziam dela entreposto comercial de monta. Chamava a atenção para a musselina bordada a fio de seda, “tecido muito apreciado na Europa”. Quanto à cidade propriamente dita – “sujidade e mais sujidade” – reduzia-a a uma quantidade prodigiosa de cabanas espalhadas na planície, “ao longo de uma légua”, e ruas muito estreitas cheias de lama e lixo – “que se amonta ao menor movimento da maré” –, onde sobressaem casas de tijolos construídas ao estilo mourisco, “de muito mau gosto”: esta era, para Barbier, a ilustre cidade de Daca, sede do poder mogol.
Já Chatigão é-nos descrita, em 1727, de forma fria e sucinta pelo capitão Alexander Hamilton, situando-a entre a fronteira de Bengala com o Arracão, realçando a sua pobreza e informando que fora ali que os portugueses se tinham estabelecido pela primeira vez, embora os perigos que os seus navios ali corriam, “devido às monções de sudoeste”, os tivessem obrigado a mudar-se “para o bandel de Hugli”.
Um relato acerca dos feringhees de Chatigão não estaria completo sem mencionarmos a presença dos franceses, que parecem ter conseguido um posto temporário na região em meados do século XVIII. Em Dezembro de 1747, M. Reneaux, chefe do entreposto gaulês de Chandernagore (arredores de Daca), ordenou que fosse criada uma feitoria em Chatigão, desígnio que se quis concretizar por volta de 1750 com a chegada a Chatigão do membro do conselho M. Albert. No decorrer da sua residência, o funcionário francês ordenaria a construção de uma capela que em 1787 se mantinha ainda de pé. Chamavam-na a “Notre Dame de la Garde Loupe à Comcam” e situava-se nas imediações do cemitério português. Um e outro seriam arrastados pela correnteza do rio durante as cheias de 1811 (ou 1812). A M. Albert sucederia no cargo M. Ticher, que se casaria com a irmã de um certo “Jon de Baros”, homónimo tardio do nosso grande João de Barros. Nenhuma outra menção é feita a esse português, que parece ter sido figura de relevo na região.
Nada mais se ouvirá acerca da actividade dos franceses, pelo menos até 1786, quando estes mostraram vontade de edificar a tal feitoria, tendo para isso requisitado alguns terrenos. A pretensão – causadora de grande agitação local – insere-se no clima de conflito entre a Inglaterra e França que então, na Europa e na América do Norte, se digladiavam; conflito esse que em 1757 se estenderia a Bengala e aos restantes territórios do sub-continente indiano. A 30 de Maio daquele ano, M. Reneaux escreveu de Chandernagore a Charles Crofts, contabilista-geral da província, informando-o do envio de um agente, “conforme acordado pelo Governador-Geral” (inglês), para recuperar “certas terras de Chatigão pertencentes à nação francesa”. Argumentaram os ingleses que os franceses jamais ali tinham detido qualquer feitoria, tão-pouco estivera hasteada ali a bandeira azul-branca-rubra. Lembraram ainda a obrigatoriedade, durante a vigência mogol, de todos os navios de pagar um milhar de rupias para poderem negociar livremente em Chatigão. Seguiram-se vários incidentes, entre os quais a insistência do agente francês, um tal M. Billon, que tomou a liberdade de hastear a bandeira francesa no exterior de sua casa, esgrimindo, entre a presença de franceses em Feringhee Bazar, precisamente o bairro dos luso-descendentes, mas o Governo local acabaria por não conceder o terreno solicitado e desse modo nunca a presença gaulesa chegou a ser uma realidade na região de Chatigão.
Joaquim Magalhães de Castro