Doçaria Conventual

Uma história açucarada

Doces que arregalam os olhos. Arte feita por mãos com amor. Cheiros que entram pelo nariz e nos remetem para memórias antigas. Ralhetes sobre pecados da gula para os quais fazemos ouvidos de mercador. Delícias para o palato. Satisfação da alma. A doçaria conventual faz parte da nossa História e do nosso património imaterial.

Quando falamos de doçaria conventual, são muitos os que logo se lembram de Santa Clara de Coimbra, de Celas, de Tentúgal, de Odivelas, de Santa Ana e da Esperança de Lisboa, de Santa Iria de Tomar, das comunidades da Conceição de Beja, das Maltezas de Estremoz, das Chagas de Vila Viçosa, do Paraíso e de Santa Clara de Évora. Ali se aprimorava uma arte com dedicação: «Nestas comunidades femininas, a doçaria era uma arte, exigindo, como todas as artes, talento e aplicação prática, até chegar ao doce que, saído das mãos de Esposas de Cristo, teria de agradar, de ser grandioso e imaginativo para poder constar na Sua mesa». As palavras são de Antónia Fialho Conde, docente do Departamento de História da Universidade de Évora, que estuda o monaquismo feminino e fez a tese de doutoramento intitulada “Cister a Sul do Tejo. O mosteiro de S. Bento de Cástris e a Congregação Autónoma de Alcobaça (1567-1776)”.

A investigadora do CIDEHUS – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades e também colaboradora do Laboratório HERCULES – Herança Cultural, Estudos e Salvaguarda (Universidade de Évora) e do Centro de Estudos de História Religiosa (Universidade Católica), conta que nos tempos livres de ofícios divinos a doçaria teria um papel especial em muitas comunidades monástico-conventuais femininas, tal como a costura, os bordados, a pintura, a música e a escrita.

O historiador e gastrónomo Alfredo Saramago escreveu em Doçaria Conventual do Norte (Colares Editora) que foram várias as razões que contribuíram para que os mosteiros e conventos tivessem desenvolvido a arte doceira: «Em primeiro lugar a riqueza fundiária, que proporcionava a obtenção de produtos com facilidade: farinha, mel, azeite, ovos, os elementos principais dos primeiros tempos da doçaria, antes do aparecimento do açúcar, eram produtos que estavam a disposição das populações monásticas, ou por exploração directa das terras, ou por contratos de foro e arrendamentos. Eram produtos que existiam com abundância. A disponibilidade do tempo que as ingressas e os ingressos tinham no seu quotidiano permitia-lhes aliviar o tédio do internamento com as confecções, por certo animados, nas vastas cozinhas conventuais».

A historiadora Antónia Fialho Conde opina, porém, que «a população dos conventos e mosteiros era hierarquizada e nem toda tinha a cozinha e a confecção da comida a seu cargo. Havia as religiosas de véu preto e coro, as religiosas conversas, as criadas moças particulares, moças da Ordem, as recolhidas, as noviças, as educandas e, até determinada altura, as escravas. Existia, pois, um conjunto muito grande de mulheres e jovens que estavam nos mosteiros com funções diferentes. Não eram as religiosas de véu preto que iam quotidianamente para a cozinha, a não ser para orientar o serviço; fá-lo-iam em dias festivos da Casa ou da Ordem. Essas religiosas seriam especialmente encarregadas da gestão interna da Casa, da administração do património bem como de funções ligadas à leitura e ao acompanhamento e educação das mais jovens, entre outras. O mesmo se passava em São Bento de Cástris. Havia monjas conversas (as chamadas monjas de véu branco) que teriam tarefas a cumprir na cozinha e não as de véu preto e coro».

Esta investigadora diz que a doçaria conventual se pode também associar ao aproveitamento de excedentes. Nos mosteiros, as claras dos ovos serviam para engomar, sobrando muitas gemas. Ao invés de as deitarem fora, eram aproveitadas, conjugando-se com outros ingredientes ao sabor da imaginação e da experimentação até se obterem muitos dos produtos que hoje constituem o requintado leque da doçaria conventual portuguesa.

Os doces confeccionados eram não só para consumo das comunidades, mas também para ofertar em caixas bonitas para os Dons Abades ou monarcas. D. João V, por exemplo, recebeu doces do Mosteiro de São Bento de Cástris. D. Maria II, quando foi a Évora, visitou o Convento do Calvário, de clarissas reformadas, famoso pelo seu pão de rala. «Ao provar este doce, cujo nome procede da designação de ‘pão de rolão’, ou pão de segunda, a monarca terá exclamado: “Quando na cidade de Évora o pão de rala é assim, o que será o pão fino!”» (Carta Gastronómica do Alentejo).

A doçaria conventual era uma arte com outras artes a mistura. A decoração dos doces e bolos, com enfeites e papel rendilhado, era o resultado de um trabalho aprimorado, como refere João Rosa para o caso de Évora. A historiadora não tem dúvidas de que «ficamos a dever o esmero decorativo da doçaria ao mundo monástico e contemplativo».

Muitas receitas ainda estão hoje no segredo dos deuses. As fontes não nos permitem aceder a dados fidedignos sobre a sua confecção. Antónia Fialho Conde revela que na comunidade religiosa de São Bento de Cástris os documentos do mosteiro registam as despesas aí efectuadas, o que dá para ter a noção do que se poderia confeccionar designadamente por altura das festas dos seus patronos, São Bento e São Bernardo, especialmente este último, ou ainda aquando da visita ao mosteiro pelos visitadores de Alcobaça. «No consumo das freiras havia frutos secos – figos, passas e nozes. Será que elas ralavam as nozes e as aplicavam na feitura de doces? Provavelmente, sim. Ficaram ainda registados consumos de especiarias, como canela, erva-doce, especiarias essas que estão ligadas também aos doces. Mas não podemos apontar quais as receitas que praticavam no mosteiro porque, até ao momento, não foi localizado nenhum documento com teor semelhante a Livro de Receitas».

Alguns trabalhos levados a cabo já divulgaram algumas receitas e muitas outras se perderam ou ficaram na posse de familiares de religiosas que não as quiseram partilhar. Antónia Fialho Conde explica que outras receitas ainda acabaram por ser confeccionadas fora do mundo monástico por criadas, educandas e meninas do Coro que entravam na vida religiosa e que depois não a seguiram. O saber daquelas receitas foi saindo fora das paredes dos conventos. Quem ficou a ganhar foi o nosso património. Mas a historiadora alerta para a necessidade de se recuperarem as antigas receitas e que sejam cumpridas com exactidão: «As questões das medidas que circulavam na altura, a canada, a quarta e o quartilho, o arrátel, a onça, entre outras, variam. Há que ter a preocupação de atender as correspondências e respeitar as medidas antigas, de acordo com as fontes, e não optar, muitas vezes, por fantasiar e atribuir a um determinado convento aquilo que se confeccionaria sem provas documentais, apesar de termos a noção de que, mesmo com receitas, a confecção de muitos doces se baseia em pormenores sigilosos e passados de geração em geração».

 

 

 

DOCES FEITOS COM AMOR (Caixa)

 

No Mosteiro de Santa Escolástica, em Roriz, concelho de Santo Tirso, as monjas beneditinas confeccionam bolachas e compotas para venderem ao público. Um meio de subsistência que lhes permite ter tempo para o essencial da vida religiosa: vida de oração e vida comunitária.

Quando estas religiosas vieram para Portugal, há cerca de 80 anos, terão trazido algumas receitas da Bélgica. Outras receitas foram sendo criadas e resultaram da experimentação e de outras influências.

O tempo aprimorou a arte e as bolachas ainda hoje são confeccionadas de forma artesanal. «Enquanto estamos a fazer as bolachas e compotas, vamos rezando», conta a prioresa irmã Maria do Carmo Tovar.

O principal segredo de confecção daquelas bolachas «é o amor que a gente põe nas coisas e a oração», sublinha a religiosa. Na confecção das bolachas, as irmãs tem a ajuda de duas senhoras que ali trabalham a tempo inteiro.

Para além das bolachas sortidas (coco, lagartos, maizena, areadas, pão de amêndoa e sablé), vendem-se ainda compotas sem conservantes com as frutas da quinta.

Pergunto à irmã Maria do Carmo em jeito provocatório se é gulosa. Responde-me, sem complexos, de forma peremptória: «Claro que sou. A pessoa deve gostar de tudo o que a vida lhe pertença».

SÍLVIA JÚLIO 

Família Cristã

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